Por favor, reservem dez minutos do seu dia, sem preguiça, e dêem uma olhada nesse maravilhoso texto do Zeca Camargo. Alias, o blog dele é sempre interessante, e, pra os que não tem preguiça de ler, vale a pena conferir toda segunda e quinta.
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A ausência da própria nela mesma
Postado por Zeca Camargo em 28 de Fevereiro de 2008 às 11:09
Uma das coisas que mais me incomodam em televisão é a ausência da própria nela mesma. Parece estranho, mas foi a melhor maneira que encontrei para dizer que é raro ver a televisão retratada nos produtos que ela exibe.
Descontando os comerciais de varejo (tela de plasma em 212 prestações!), me diga rapidamente quando você viu a própria TV aparecer na trama de uma novela ou seriado – ou mesmo num cenário? Não está fácil de lembrar, garanto. A não ser que você esteja assistindo a minissérie Queridos amigos – e mesmo assim, você vai ter que prestar muita atenção.
Digo isso porque comentei com várias pessoas que também estão acompanhando a série – ou, pelo menos tentando – e poucas foram as que captaram um pequeno momento histórico da TV. Era uma cena simples, que poderia mesmo ter passado despercebida, não fosse uma frase dita displicentemente por um personagem. Um adolescente entra na sala onde a família está reunida em frente à televisão e diz: Vocês precisam mesmo ver isso?.
Se você já teve dificuldade em responder àquela pergunta do primeiro parágrafo, essa então vai ser ainda mais complicada: você se lembra de alguma cena em algum programa exibido pela televisão onde alguém fala mal dela? Não, não se lembra – e se quiser me contrariar, fique à vontade para mandar seu comentário
Há uma semana, num inocente post sobre a arte do remix, comentei rapidamente que, ao ver Queridos amigos, tinha tido a sensação de que minha TV aberta tinha se transformado numa HBO. Se você tivesse a noção de quantas brigas eu arrumei por conta disso! Não as discussões óbvias – e se você também é da brigada pró-conspiração que acha que eu tenho de fazer elogio a essa minissérie só porque trabalho na mesma emissora em que ela é exibida, pode parar sua leitura por aqui e começar a escrever no seu próprio blog a última denúncia que você descobriu contra mim (e não deixe de me mandar o link!). Me refiro a argumentos de amigos a quem tenho em boa conta e pessoas cuja opinião eu respeito muito – todos indignados por eu ter dito alguma coisa positiva de um trabalho que todo mundo está detonando.
De fato, está sendo difícil defender a minissérie. Eu mesmo, recruta voluntário do exército de Martin Amis na sua guerra contra o clichê (um livro muito interessante, desse que é um dos meus autores favoritos – mas que infelizmente ainda não foi traduzido para o Brasil), reluto em ser admirador de uma narrativa que se sustenta em solilóquios do tipo a beleza da vida está em encontrar a luz nos olhos de quem se ama (admito, uma frase como essa nunca saiu da boca de um dos personagens da minissérie – nem mesmo da do Léo! Mas você entendeu o espírito ).
Quem sobrevive a essas turbulências (tarefa árdua) consegue ver alguma coisa de diferente – e boa – em Queridos amigos. Como – retomando – um personagem que fala descaradamente mal da TV, na própria TV. Para mim, isso é tão revolucionário quanto Sonia Braga, no papel principal da novela Gabriela (1975), subindo num telhado para pegar uma pipa. A falta de referências sobre esse veículo dentro do próprio veículo é algo com que nós convivemos há tanto tempo que mal nos damos conta. Para um país que consome TV como o nosso (aliás, qual cultura não a consome avidamente?), essa ausência chega a ser surreal. Mencionei isso lá em cima brincando, mas agora pense para valer: qual é o cenário de novela em que uma TV faz parte da decoração de uma casa – e ainda por cima é referência em alguma conversa? (Manoel Carlos, é verdade, pincela uma televisão aqui e ali nos seus dramas cotidianos – mas são, convenhamos, tímidas aparições.)
Não precisa me lembrar que, se os personagens de alguma cena estão assistindo TV, elas não estão (justamente) conversando – e que novela é diálogo Mas simplesmente varrer da história um aparelho que faz parte do nosso cotidiano é, no mínimo curioso.
Essa lacuna não está apenas nos cenários. Talvez para evitar a armadilha da auto-referência, ela está fora de quase toda a dramaturgia (descontando-se, claro, os programas de humor que, do outro lado do espectro, praticamente tiram toda sua inspiração da televisão). Só para dar um exemplo, cito uma ótima novela do nunca menos que genial Gilberto Braga (e se você está achando que o elogio é gratuito, apenas para equilibrar minha discussão aqui, confira o post que na época da estréia de Paraíso tropical). Estou falando de Celebridade – uma história cuja trama propunha uma discussão sobre o fascínio do mundo da fama, mas que retratava essas pessoas famosas sempre como cantores, atletas e socialites, mas raramente como pessoas de um grupo que é simplesmente a maior fábrica de celebridades do nosso cotidiano: artistas de TV.
Como não escrevo (ainda ) ficção, só posso imaginar as dificuldades de incluir o universo da TV nas histórias que ela mesma vai contar. Quando ela aparece, geralmente é porque a trama precisa dar uma notícia – e, sendo assim, o programa assistido é invariavelmente um telejornal. Não foi diferente na cena que vi da minissérie (onde, aliás, as informações – em clipes reais – ajudam a dar o contexto da época em que se passa a história, 1989). Mas isso não tira o impacto da frase que o garoto disse em Queridos amigos.
Aliás, é uma pena que os lugares-comuns reconfortantes estejam espantando aqueles que procuravam uma história interessante. Sim, porque a história interessante – ainda que longe de original (homem com a saúde condenada reúne velhos amigos para um reencontro? Ora você já viu esse filme!). E o protesto daquele personagem contra o ato de assistir TV não é a única frase forte dita pelos personagens da minissérie.
Apenas no capítulo de ontem (quarta-feira), colecionei alguns momentos que, como já mencionei, você não vê toda hora na TV aberta – aliás, você não os vê nunca na TV aberta Por exemplo, os filhos gêmeos de Raquel (Maria Luiza Mendonça) – idade aproximada, 8 anos – reclamam para a mãe que o irmão mais velho chamou eles de pentelho. Lena (Débora Bloch) diz, com a maior naturalidade, que Léo (Dan Stulbach), num determinado momento, estava chapado. Benny (Guilherme Weber) joga displicentemente para Tito (Matheus Nachtergaele): Meu pai me violentou quando eu tinha 10 anos. E, enquanto o telespectador ainda se recuperava dessa confissão, o namorado de Benny, Jurandir (Sidney Santiago) declarava ao filho adolescente de Tito, numa sala do sebo onde a cena transcorria: Eu vou ser o Van Damme negro e bicha. E ainda teve a descrição de Bia (Denise Fraga) de como ela era estuprada repetidamente na prisão.
É por esses momentos – que eu chamaria de corajosos – que eu vou continuar assistindo Queridos amigos – sob os olhos reprovadores de amigos e (possíveis ex) admiradores. Por isso e, claro, pelas excelentes atuações da maioria do elenco (pode incluir nessa lista todos os que eu citei nas cenas acima e mais alguns atores e atrizes cujo trabalho eu não conhecia bem e que estão ótimos, como Joelson Medeiros, Malu Galli e Odilon Esteves – que faz nada menos do que o papel de um travesti). Mesmo com todo o didatismo em excesso (justificado – ainda que não suficientemente – pela necessidade de dar a um público que não viveu essa época, um contexto maior para a história). E mesmo com todas as frases feitas.
Hei de sobreviver tudo isso com a coragem cálida de quem nunca quis que seu coração indômito se calasse (ai!)
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