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Quando assistimos filmes “antigos”, que se situam aproximadamente entre 1970/1980, as famílias em geral são retratadas da mesma forma: classe média, o pai funcionário de uma grande empresa que com seu salário garantido sustenta a família. Essa família, em geral, é composta pela esposa (que por sua vez trabalha em casa ou na rua – por opção) e pelos filhos (dois ou três). Uma família feliz, pois consegue ter uma vida boa, fazer viagens de férias, ter seu carro, seus eletrodomésticos e sua casa própria. Nos encontros com os vizinhos, cada um fala muito bem de sua empresa e de seu trabalho, e de como a estabilidade é o melhor bem que o emprego pode dar.
Mas o tempo foi passando e o capitalismo foi entrando em crise. Com ele, as empresas também mudaram sua forma de tratar os empregados, que cada vez tem que trabalhar mais, com menos benefícios, e sem garantia de que terão o emprego no dia seguinte. Com essa mudança de mercado, o desejo das pessoas também foi mudando. Elas começaram a almejar cargos e posições públicas pois estes oferecem garantia vitalícia de emprego, apesar dos salários não serem tão competitivos como o mercado. Além dessa garantia (que por si só já atrai 90% dos “concursandos”), todos nós sabemos do velho e famoso ditado: quem é funcionário público ganha pra trabalhar pouco. Sem o medo de ser mandado embora não há uma exigência em produção e qualidade de serviço executado. Quem aqui já não precisou de um serviço público? Nessas horas sabemos bem como as coisas funcionam (com raras exceções – que vou discutir mais tarde).
Com esse novo objetivo traçado, centenas de brasileiros começaram a dar uma atenção maior aos chamados concursos públicos. E com isso houve também um crescimento na oferta dos cursinhos, essas escolas que fazem um preparatório para provas de concursos. E a partir daí, acho que podemos dividir essa galera em dois grupos:
1) Qualquer coisa tá valendo: nesse grupo, temos aquelas pessoas que querem ser funcionárias públicas. O cargo? Isso não importa. O primeiro concurso que sair, essa pessoa vai prestar, e vai prestar todos os outros, na sequência, até passar. Um graduado em direito, por exemplo, vai prestar para vagas de delegado, promotor, procurador, juiz, fiscal… Enfim, vai prestar em todas as áreas que sua formação permite. O importante é mamar nas tetas do governo, ter seu emprego garantido, trabalhar o mínimo necessário e ficar tranquilo para o resto da vida. Acontece, muito raramente, de um funcionário público desse grupo realmente se interessar por sua profissão (pura sorte) e aí realmente trabalha pra valer, fazendo valer o salário que o povo paga pra ele.
2) É isso que eu quero: nesse grupo, as pessoas não querem qualquer profissão. Elas já sabem o cargo que querem exercer, e portanto vão estudar e focar naquele objetivo. No fundo, o que elas querem é exercer a profissão, seja onde for. Mas como o mercado não anda bom pra ninguém, os concursos são uma oportunidade de ela exercer sim a profissão que quer, fazendo o que gosta, e ao mesmo tempo tendo o seu salário garantido. Essas pessoas entram com uma sede de trabalho muito grande quando passam no concurso. Mas algumas acabam entrando no esquema folgado, porque percebem que querer trabalhar quando ninguém quer é muito difícil e dá muita dor de cabeça. Algumas poucas continuam brigando pra trabalhar (isso parece ridículo, mas é a mais pura verdade) e trabalham mesmo, pesado.
Acontece que quando uma pessoa decide prestar o concurso público, ela pensa que o mais difícil é a parte do estudo, ou seja, passar na prova. Muitas pessoas passam anos e anos de suas vidas estudando, e por vezes são engabeladas por editais de concursos que só querem mesmo enganar os coitados. Digo isso porque muitas pessoas deixam suas vidas em pausa pra estudar, pagando esses concursos, ou mesmo gastando seu dinheiro com livros, etc. Tudo em prol da tão sonhada vaga. Essas pessoas já enfretam um problema: muitos editais de concursos são feitos só pela burocracia: algumas pessoas já trabalham nos cargos do edital, mas como contratadas, ou substitutas, e os editais pretendem oficializar essas pessoas nos cargos. Mas como são obrigados a dar oportunidades para todos, lançam editais “engana-trouxa”. É horrível esse nome, mas não poderia ser dado outro. Esses editais já são preparados para encaixar exatamente os perfis daqueles para as quais as vagas se destinam, ou seja, os que já trabalham na área (ou os apadrinhados, por ‘n’ motivos). Como um número grande de pessoas consegue preencher os requisitos, o segundo passo é preparar uma prova em que os apadrinhados vão melhor do que o povão. E o terceiro passo, em geral numa fase subjetiva, os critérios não ficam claros, e mais uma vez os apadrinhados terão grandes chances. Esses são os editais em que eles conseguem arrecadar bastante dinheiro (das inscrições) e no final não se vê muita supresa, quando os aprovados são em 80% as pessoas apadrinhadas.
Há ainda aqueles casos em que os apadrinhados não conseguem passar. Aí temos um segundo problema que é a convocação. Então você está feliz da vida porque passou, mas percebe que nunca é convocado. Até desiste, já que a validade desses concursos é cada vez menor. O que você não sabe é que muitas vezes, mesmo com candidatos aprovados, eles continuam contratando (por fora) ao invés de convocar os aprovados. Se você bobeia e deixa de acompanhar o diário oficial (em muitos concursos, o aprovado só tem como acompanhar as convocações e contratações pelo diário oficial), você tem grandes chances de ter sido passado pra trás mais uma vez.
Eu poderia ficar aqui contando todas as situações em que os concursos são mero teatro, mas vou falar do outro lado da história. Muitas pessoas acabam ficando espertas com esse movimento todo, e ficam de olho, atentas. Não desistem, e quando percebem alguma coisa desse tipo, brigam, lutam. Entram com recursos, pedem anulação do edital para o MP… Enfim, há muita coisa que pode ser feita quando se tem indícios de fraude nos concursos. Uma pena que a grande maioria, mesmo sabendo disso, não tem a força para entrar em um processo, e acaba deixando pra lá. Mas quem tem força consegue muitas vezes anular concursos e ter uma nova oportunidade verdadeira. Não posso deixar de falar também nas universidades e estados que fazem sim concursos íntegros, dos quais muitas pessoas se beneficiam. Mas, na dúvida, é bom ficar alerta.
De qualquer forma decidi falar de tudo isso hoje porque percebo a inocência do chamado “povão” quando sonha com o cargo público. Mas a verdade é que poucos se beneficiam e conseguem essas vagas. O grande resto enche os cofres dos cursinhos, da conta do concurso público, e é só número pra fazer volume. Essas pessoas, em geral, nem sabem porque querem prestar o concurso público, porque em geral estão naquele primeiro grupo que eu descrevi acima. E quando falo em inocência, quero dizer das mil maneiras que o governo e a sociedade têm de enganar o povão. Damos os sonhos, dizemos que eles podem sonhar com ‘a’ e ‘b’, e no fundo sabemos que as chances desses sonhos se concretizar são mínimas. E temos que pensar nisso também, que sonho é esse que nossa sociedade produziu, no qual o grande objetivo é mamar nas tetas do governo. Estamos vivendo um momento político muito assistencialista: não produzimos melhores condições, pelo contrário, damos algo para o povo ficar satisfeito e calado. E os sonhos e objetivos das pessoas têm refletido isso, como esse sonho de concursos públicos. Isso é muito perigoso, porque cada vez mais deixamos as pessoas acreditarem que o melhor pra elas é mamar nas tetas de alguém, e não exigir condições para ser independente.
O quanto antes pudermos denunciar essa prática (em todos os setores), mais damos chance para que as pessoas possam pensar criticamene e de fato escolher seus sonhos e objetivos para além daquilo que a sociedade mostra que devemos e podemos desejar. Mas, se o seu sonho for esse mesmo, então tenha peito pra brigar pelo que é certo, porque será um longo caminho a ser trilhado, caminho esse que não termina com sua aprovação.
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Aline, de fato, muitos concursos públicos são “marcados”, ou seja, a vaga já é direcionada a determinado candidato. Ocorre que os chamados “concurseiros” costumam saber quais as empresas responsáveis pela organização e realização do concurso que não são confiáveis e já nem prestam o concurso realizado por tal empresa. Acho importante que, assim que for publicado o edital, o interessado procure se informar sobre a idoneidade da empresa responsável pelo concurso.
Acho também que se a pessoa deseja prestar um concurso público, deve, antes de tudo, estar informada. Estudar não é somente ler a matéria que vai cair no concurso. É, antes de mais nada, estar atento com o que acontece no mundo e no país onde vive.
Como vc falou, muitos ingressam nesse mundo de concurso público, sem saber da dificuldade de ingressar num cargo público. É muita concorrência, gente com cada vez com mais conhecimento e que se dedica cada vez mais a estudar. Muitos abandonam seu antigo e emprego e passam, no mínimo, oito horas por dia estudando. Sei porque meu noivo é concurseiro. Ele já passou em alguns, foi convocado, mas preferiu seguir estudando para algo com melhor remuneração.
E se engana quem acha que ingressar em um cargo público significa necessariamente “mamar nas tetas do governo”. Sou advogada e cada vez mais recebo clientes que querem anular o ato de demissão emanado pelo órgão público em que trabalhavam, pois não cumpriram com zelo e eficiência às atividades que lhe foram incumbidas.O funcionário público além de ter muitos direitos, têm também muitas obrigações. Muitas dessas obrigações estão previstas em estatutos e na própria Constuição Federal.
Os chamados “cabides de emprego” não são mais tão comuns assim, principalmente pela atuação do Ministério Público que ingressa cada vez mais com ações civis públicas questionando esse tipo de situação e requerendo severas punições.
Além do mais, como vc mesma mencionou, é possível o ingresso de ações judiciais a fim de questionar os concursos públicos irregulares. E não é preciso de muita força, a OAB possui o serviço de assistência judiciária gratuita. Acho que a culpa não é somente do governo, porque se a população questiona a direção de determinado time de futebol com tanto afinco, acho também que deveria ter forças para exigir melhores condições de saúde, educação, etc.
Hoje em dia alegar desconhecimento, na minha modesta opinião, é um pouco de comodismo. Principalmente porque hoje em dia a informação é mais acessível. A internet está aí, quem não tem computador em casa pode acessá-la em qualquer “lan house”. Ora, se acessa o orkut, pode facilmente acessar algo mais educativo.
A mudança tem de vir da forma de raciocinar da população, que está acostumada a sempre jogar a culpa nos governantes. É óbvio que eles tem uma grande parcela de culpa, mas acho que reclamar apenas não adianta, deve-se buscar o conhecimento. Essa é a melhor forma de combater injustiças.
Achei legal você abordar essa matéria. Parábens pelo blog, eu o acompanho sempre que posso!
Carolina,
Obrigada pelo seu comentário! O que você diz só acrescenta a idéia que eu defendo nesse post! E é sempre bom saber que tem muita gente por ai trabalhando duro e querendo fazer valer direito, sem preguiça e sem inocência! Quem sabe aos poucos vamos conseguindo mudar as coisas…
E o resultado do concurso do BB organizado pelo cespe, onde consigo?
Parabéns pelo post, nota mil, se no Brasil acontece situações dessas, imagine em países do terceiro mundo como e o caso de Moçambique, o concurso publico e feito, como se diz por ai “para o inglês ver” porque na verdade a vaga já tem dono faz tempo…!!!
Obrigada!
ola como faço para ter meu número de inscrição do concurso público da cidade de Alto Alegre do Pindaré – MA
eu perdi meu boleto que tinha o número o que faço????
O mercado também tem culpa nessa história. As empresas exigem cada vez mais uma hiperqualificação para ocupar um cargo, ou seja, mais tempo sem trabalhar e dinheiro para investir, correndo riscos de não se obter o devido retorno, pois o que vale uma especialização hoje pode não valer muito amanhã. Aqueles que querem entrar no mercado mais rapidamente têm a opção de fazer um curso técnico profissionalizante, o que sabemos que no Brasil é sinônimo de muito trabalho e baixa remuneração.
Morley,
Por outro lado, talvez seja um erro fazer um curso para o mercado de trabalho. O curso deveria ser feito para melhorar a qualidade do seu trabalho, assim ele nunca se tornará “inválido” para você.
“Montar” toda uma carreira pensando no mercado de trabalho pode se tornar um suicídio profissional, porque o tempo que você leva pra terminar essa formação, a sociedade já mudou e o mercado de trabalho também.
Talvez, pensar em construir uma carreira que vá de encontro com os seus interesses e não tanto com o que o mercado exige em um determinado momento pode dar a sensação de utopia, mas ao mesmo tempo pode promover uma sensação de qualidade e não apenas de valor no mercado. Pense nisso.