Contando histórias e criando sentido – Deficiência Visual

A história

Pra quem ainda não sabe, tenho um filho de 12 anos que possui baixa visão. De acordo com os mil exames e mil médicos que já passamos, ele enxerga 0,03 em um olho e 0,05 no outro. Se você é esperto e foi pesquisar, já percebeu que de acordo com a tabela oficial ele é considerado quase cego. Mas os médicos percebem que essa tabela não consegue ser tão precisa como deveria, já que ele tem essa porcentagem ai mas enxerga como uma pessoa que tem baixa visão. Diagnósticos, como sempre, não dão conta da subjetvidade e da singularidade de cada caso, mas esse não é objetivo desse meu texto. Hoje eu vou começar a contar uma história (das mil que vivemos) sobre como é ser mãe de uma criança com baixa visão nesse mundo ai de doido.

Fazer esportes, para quem é cego ou tem baixa visão, é uma coisa complexa. A maioria dos esportes envolvem corridas ou necessitam de uma relação com um objeto/objetivo distante, que obviamente não podem ser vistos por uma pessoa que não enxerga direito. Então, depois de tentar muitos deles (até mesmo os adaptados) nada deu certo para o Gabi. E não é mesmo da personalidade dele gostar de esportes, então ficamos sem opções para as atividades extra-curriculares. Aqui em casa temos uma ligação muito forte com a música e com isso ele desenvolveu interesse no aprendizado do teclado. Mas pagar por um professor particular estava fora das nossas possibilidades, então bora atrás do Conservatório.

Aqui em Uberlândia o Conservatório Municipal oferece muitas aulas de música: diversos instrumentos para diversas idades e de graça. Basta que no final do ano você se inscreva no processo seletivo e seja selecionado. Ao entrar em contato com eles, em setembro no ano passado, descobri que crianças com “necessidades especiais” (detesto esse termo) têm um processo seletivo a parte já que existem vagas específicas voltadas para esse grupo. Entrei no site e quando terminei de preencher as mil lacunas fui direcionada para uma página que me dizia que a data dos “especiais” era diferente e que eu teria que entrar em contato com o Conservatório. Depois de passar a tarde tentando (porque só dava ocupado) uma pessoa me atendeu, me passou pra outra, que me passou para outra que finalmente me disse que eu teria qe fazer tudo de novo porque a data da entrevista deveria ter aparecido depois do meu Enter final e que se não apareceu é porque eu fiz algo de errado. Já era tarde e eu deixei para fazer no dia seguinte.

No dia seguinte fiz a mesma coisa e o mesmo problema aconteceu. Liguei novamente e depois de novos redirecionamentos da ligação, alguém me diz que os dias de entrevistas seriam em novembro e que era só aparecer lá, já que no site estava dando erro. (Custava ter me dito isso da primeira vez?)

Meses depois, finalmente chega o dia da entrevista. Haviam me pedido para levar o laudo comprovando a deficiência e eu prontamente tirei cópia e levei. Durante a entrevista uma professora de surdos me pediu desculpas pois a professora de cegos não estava, mas ia fazer a entrevista por ela. Perguntou com detalhes quais eram as questões do Gabi e que adpatações deveriam ser feitas. Fomos embora com a sensação de que ele passaria.

Em janeiro deste ano recebemos uma ligação confirmando a aprovação e pedindo nossa presença no dia seguinte (sem falta) com os documentos necessários, para a efetivação da matrícula.  Nenhuma outra instrução foi dada, apenas que levássemos os documentos. Era onze horas da manhã e eu teria que largar todo meu planejamento do dia para correr atrás dos documentos (já que eu só poderia efetivar a matrícula no dia seguinte). Me perguntei o que faz uma mulher que não pode mudar seu planejmento porque não tem uma agenda de trabalho tranqüila como a minha – ela perde a matrícula ou o dia de trabalho, claro.

No dia seguinte estávamos lá no Conservatório eu, Gabi e os mil documentos. Chegamos as 14:00 e a senhora da recepção não estava mais distribuindo senhas porque tinha muita gente. (Como se isso fosse problema de quem estava indo fazer matrícula). Mas como o Gabi era “especial” poderia entrar e não precisaria ficar na fila. Esta mesma senhora me levou ao local de matrícula junto com um outro senhor cego que também aguardava, sozinho, ser chamado para a matrícula. Enquanto passávamos pela fila senti olhares furiosos nos fuzilando (o Gabi tem deficiência mas não parece ter, então as pessoas não entendem porque não vêem nada de diferente). Esta senhora nos avisou: vocês tem que fazer matrícula com a D., somente com a D.

Cerca de 20 minutos depois alguém me chamou de dentro da sala (entupida de pessoas). Entramos lá e uma moça gentilmente veio fazer a matrícula. Eu avisei que a senhora lá da frente havia me pedido para fazer matrícula somente com a D. Essa D. estava do meu lado e disse que qualquer um poderia efetivar a matrícula. Entreguei os documentos e avisei que o Gabi era DV. Ela entendeu e me pediu novamente os documentos que eu entreguei no dia da entrevista (Perderam? Claro…) e como eu sou preparada, entreguei tudo de novo. Ela fez a matrícula, escolheu os professores e me disse que estava tudo certo, era só comparecer no primeiro dia de aula. Saímos e pude escutar alguém da fila dizendo para o filho: “Tá vendo, precisa ser “especial” pra ser atendido logo…” Ah, e o senhor que estava sozinho ficou lá, sabe-se lá quem iria se lembrar dele e chamar o próximo. E eu já tinha avisado umas três vezes que ele estava aguardando…

Duas semana depois eis que chega o primeiro dia de aula. Ele teria musicalização e depois a aula prática. Já na aula de musicalização, com 5 minutos de aula, a professora sai da sala e me explica que a apostila que ela trabalha não estava dando certo com ele pois ele não estava enxergando (De que adiantou mesmo os relatórios com laudo, a entrevista para saber as adaptações necessárias?). Pediu meu email para que me passasse o conteúdo e assim eu poderia providenciar as adpatações necessárias. (Mas perai, esse negócio do governo não tem que me fornecer o material já adaptado? Tem né, mas a gente sabe que não é isso que acontece, as mães já estão acostumadas a adaptar elas mesmas…) Terminando essa aula, fomos para a prática. A professora do Gabi era a professora de surdos e logo percebeu que haviam feito a matrícula dele errada. Nos levou na sala da professora de cegos e explicou. Esta nova professora, R., prontamente nos encaixou em seu horário e até aproveitou para encaixá-lo numa prática de grupo (só com cegos). Achei o máximo mesmo achando essa nova professora um tanto simpática demais, até mesmo bajuladora demais. E lá fomos para a secretaria passar os novos horários e explicar a confusão.

Chegando na secretaria, R. explicou tudo o que havia acontecido, aumentando mais ainda o grau de simpatia e bajulação (e foi ai que caiu minha ficha – serviço publico nego tem que bajular, elogiar e plantar bananeiras para que o outro faça aquilo que na verdade é sua obrigação) e logo escutou um “não dá, o sistema não deixa. Pq você não avisou que ele era DV na matrícula?“. Juro que minha vontade era de esganar um, mas com minha grande paciência avisei que isso tinha sido feito mas aparentemente o engano havia ocorrido da mesma forma. Depois de me olhar com aquela cara de “você está errada e agora não tem jeito”, virou para o colega e começou a conversar. Oi, e eu? … R. me olha e pede que eu aguarde uma vaga no horário dela. Isso poderia levar 6 meses, até mesmo um ano. Eu olhei bem séria pra ela e disse que não seria possível aguardar e que o Gabriel poderia perfeitamente continuar com a prof. de surdos até ela conseguir uma vaga (até pq eu tinha gostado mais dela mesmo). E assim voltamos para a sala e tocou o sinal. E o Gabriel não teve sua primeira aula.

Trocando em miúdos

Serviço público funciona? Claro que funciona. O problema não é o funcionar ou o não funcionar e sim o COMO funciona. Que o Gabriel terá aulas de teclado isso eu tenho certeza. Agora todo o estresse que se passa para que isso aconteça é que é demais. Imagina aquela pessoa que precisa do serviço público pra tudo na vida? E o pior, você não tem onde reclamar, não tem SAC, não pode sair dando piti dizendo que vai procurar o concorrente…

Agora a reflexão que eu proponho aqui é: adianta sair por ai dizendo que tudo é culpa do governo ou do político corrupto? Claro que muitos desses problemas acabam refletidos no dia-a-dia, mas tudo que eu vi ali foi uma porção de gente fazendo seu trabalho de qualquer jeito, cometendo uma série de erros, um atrás do outro, como se a população tivesse que agüentar pois não paga nada e está recebendo um “favor”. Queridos amigos: o problema é sempre a pessoa, aquela que está ali fazendo seu trabalho de qualquer jeito porque se acha mal paga, coitada, ou sei lá mais o que. Ao invés de lutar por seus direitos, faz o seu trabalho de qualquer jeito e prejudica uma outra pessoa que provavelmente luta pelos mesmos problemas que ela no seu trabalho. Então meu amigo, você que está ai pensando que é um coitado, um ferrado pelo sistema, acorda! Vai pensar em que responsabilidade você tem nisso tudo e nessa cadeia de porcaria que tem se tornado sua vida e a vida de quem depende de você.

Agora em relação as deficiências e o seus “direitos”, continua sendo difícil exigir aquilo que temos direito porque ficamos cansados e, se temos condições, preferimos pagar para não ter tanta dor de cabeça. Se eu fosse exigir o material adaptado, meu filho ficaria pelo menos 30 dias tendo aula sem material. Se eu fosse exigir a professora “correta”, ficaria de seis meses a um ano esperando a vaga. E por ai vai.

Vou viver um pouco mais dessa experiência e depois volto aqui para contar mais.

….

Anexo

Essa sou eu fazendo minha parte: http://www.sitiodainclusao.com.br/

Falarei mais sobre isso em um novo texto logo logo.

12 Comments

  1. Ana Cristina Fiuza

    Olá Aline, gostei muito do seu texto e fiquei me questionando o tempo todo o que fazem essas pessoas que trabalham em um emprego público para que a realidade possa mudar? Trabalhei 7 anos na prefeitura de minha cidade e percebia que quando um funcionário tenta fazer seu serviço da melhor maneira possível ainda é criticado por seus colegas. Infelizmente isso tudo compromete todo o processo, e principalmente a vida daqueles que precisam de tudo isso funcionando.

    • Aline Accioly

      Boa tarde Ana, e obrigada pelo seu comentário!

      Essa é uma questão que aparece muito pra quem trabalha como funcionário público. E o triste é que não existe uma resposta certa, um jeito único e correto de fazer as coisas. Mas vejo que essas pessoas, como você, que querem trabalhar acabam dando “seus pulos” para que a coisa funcione. E é mesmo uma questão de tomar as rédeas da situação e de vez em quando bater de frente com os próprios colegas.

      A professora R. da história acima tenta fazer isso com o excesso de elogios e bajulação. Mas na hora de ser firme na sua decisão (“sei que o sistema não permite, mas vou atender o aluno porque tenho horário”) ela não foi forte, preferiu não sustentar sua postura para não brigar com os colegas de trabalho, até porque deve depender deles para outras coisas. É importante ter jogo de cintura sim, mas também é importante ser firme e defender seu argumento quando necessário. Mesmo que isso signifique que tenhamos que trabalhar mais e comprar algumas brigas de vez em quando.

      Conheço muitas pessoas que passam por isso e percebo que elas passam por muitas dificuldades mas não desistem de fazer bem o seu trabalho, na medida do possível. E a partir dessa postura outras pessoas se unem a elas nesse processo e vamos unindo forças mesmo sabe? Parece clichê e coisa de auto ajuda, mas é verdade.

      Perceber que tudo isso acontece e não se deixar levar pelo que todo mundo faz já é trabalhoso, mas é o passo inicial. Espero que você não tenha desistido por isso!

  2. Diane Portugueis

    Ola querida Aline!

    Escrevo para dizer que gostei muito do seu texto. Fiquei tambem muito emocionado pois, alem da forma “viva” que voce narrou toda a história, lembrei da menina forte e cheia de iniciativa que tive o prazer de conhecer ainda no colégio.

    Acredito realmente que a vida seja uma passagem onde aprendemos e ensinamos. Sempre te admirei e tenho certeza que em tua caminhada, ainda vais ensinar a muitos de nós, mesmo sabendo que ainda estas aprendendo a cada dia, a cada experiencia.

    Parabens pela tua garra e tua familia! E muito obrigada por compartilhar! Como tambem sou psicóloga, sei muito bem a importancia que este tipo de iniciativa tem. Por isso, sempre avante dona Aline!!!

    Um grande beijo, bastante especial…

    Diane

  3. Allyne Bisinotto

    Aline

    Interessantíssimo seu texto. Estava ouvindo seu postcad com a prof. Dilma sobre a “Pedagogização da internet” e me deparei com esse texto. Lembrei de um colega do meu irmão que é professor no conservatório de minha cidade, Ituiutaba MG, dv, professor para alunos sem deficiências. Curioso. O que quero expor é que o conservatório daqui da minha cidade é do Estado, e dificilmente existe esse tipo de problema aqui (pode ser pelo número de habitantes gritantemente menor que udi). Não há tanta burocracia pra um DV ou DS, no que diz respeito a documentos que provem que o aluno possua deficiência, e outra, os professores do conservatório daqui, quase que todos, dão aulas para deficientes ou não deficientes. Não há um professor específico para esse ou aquele aluno. Meu irmão, professor nesse conservatório, por muitos anos ministrou aulas para um adulto DV. Uma pena ver uma cidade do porte de Uberlândia existir esse tipo de situação no meio público, Aline. Pena mesmo!!! Ah, ia me esquecendo. Os materiais são adaptados sim, quando o orgão é público. O conservatório daqui os materiais são disponibilizados para os alunos com DV.

    Felicidades

    Allyne Bisinotto

  4. Aline Accioly

    Diane, seu comentário é só felicidade! Obrigada 🙂 bjs

  5. Aline Accioly

    Allyne,

    Obrigada pelo seu comentário. Não posso deixar de enfatizar que o Conservatório é muito bom. Possui uma estrutura enorme, oferece diversos serviços a população coisa e tal. Mas quanto maior a cidade, maiores ficam os problemas – o que é natural. Essa coisa de querer colocar professores especializados foi uma boa iniciativa mas a execução é que está um pouco complicada. A mesma coisa vale para o material adaptado: a gente sabe que tem direito mas também vive a dificuldade que é para aguardar as coisas como devem ser. Mas é muito bom saber que em outros lugares a burocracia e as dificuldades são menores!

  6. Allyne Bisinotto

    eu errei aí, é podcast kkkkkk. Desculpe, estou me familiarizando com os termos.

  7. Allyne Bisinotto

    Aline,

    vi que aborda várias questões sobre a Educação e achei todas elas muito pertinentes e interessantes. Sou professora da rede pública de ensino fundamental, e vejo que professores são violentados física e moralmente pelos alunos frequentemente. Hoje mesmo, a professora de Ciências disse aos prantos: “o professor que entra naquela sala pra dar aula não tem amor próprio”. Em novembro do ano passado, uma professora de Inglês levou um murro em seu seio e quase que sua mão foi quebrada por um aluno de 11 anos, o qual teve como punição apenas a transferência para outra escola. Gostaria de saber do que você acha sobre a violência em sala de aula tendo como alvo o professor.

    grata.

    Allyne

  8. Judith Mara

    Olá, Aline! A sua história me fez refletir sobre a questão de se separar tanto o profissional: professor de surdos, professor de cegos, professor de deficientes intelectuais, professor de quem não tem nenhuma deficiência. Por que não um professor para todos, com a possibilidade de aprender com as novas experiências? Essa história também me remeteu a um texto lido há algum tempo “Inferno nacional”, esse texto retratava o serviço publico no Brasil, que aparece aqui bem ilustrado. As pessoas esquecem q estão onde estão pq escolheram estar e justificam sua falta de iniciativa, compromisso e responsabilidade pelo baixo salário q recebem. O pior de tudo é q não fazem nada p mudar. Acreditam q uma ação pontual é insuficiente p mudar essa triste realidade, mas já dizia Tom Coelho “são as pequenas ações individuais tomadas coletiva e sucessivamente a gênese da transformação”. Parece dificil q as pessoas do serviço público percebam q cada um precisa fazer a sua parte em todos os sentidos, desde um trabalho responsável até a luta por seus direitos.

  9. Aline Accioly

    Allyne, vou ficar te devendo um texto só sobre violência. Temos muito que conversar sobre isso também!

  10. Aline Accioly

    Judith,

    Eu fiquei me perguntando a mesma coisa, porque achei essa professora de surdos tão legal e interessante que fiquei até decepcionada quando percebi que ela não poderia dar aulas pro Gabi. Mas depois fiquei sabendo que ela poderia sim já que isso não é uma questão obrigatória por lá. Talvez até porque as professoras se sintam mais a vontade no seu nicho ou algo do tipo. Talvez nem todos queiram trabalhar com outras realidades, e com isso se perde muito.

    O problema do serviço público, na minha opinião, vem também da mentalidade de algumas pessoas que entraram lá. No meu post sobre Concursos Públicos, aqui no blog, eu falei um pouco sobre isso. Algumas pessoas querem ser X (professor, coordenador, advogado, etc) e vêem na carreira de funcionário público uma maneira de atuar no que gostam. Já outras pessoas querem ser funcionárias públicas, não importa muito a atividade. Dai vejo que muitos problemas partem já desse objetivo inicial. E acho que você falou tudo: as pessoas ainda não enxergam que as pequenas ações transformam sim, talvez a falta de incapacidade de enxergar o longo prazo.

  11. Tatiana Ávila de Lucia

    Querida Aline,
    Bela “narrativa”! Você é alguém que tem história de vida e espero que a conclusão da minha tese de mestrado seja que pessoas com histórias de vida tem mais recursos de enfrentamento da vida! Afinal, como sempre diz a minha mãe: “saco vazio não para em pé”!
    Um abraço carinhoso desta colega que tanto lhe admira.

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