Seminário Clínico 2025 – Escrita Corpo Falante:
Ler, Escrever, Enodar
Com Aline Accioly
Psicanalista
Doutora em Estudos Psicanalíticos (UFMG)
Carta-convite ao tropeço
No último evento do Outrarte, levei um trabalho sobre um caso clínico publicado posteriormente como livro. Enquanto lia um trecho do material para a pequena audiência do evento, tropecei em uma equívoca troca de letras. No texto, havia a expressão pá de cal, nomeação com a qual a analisante testemunhou por escrito os efeitos de uma análise e seu fim. No entanto, o que saltou em outra língua, na leitura do fragmento, escrevia uma transformação tropeçante: pé de cal.
Reparei na minúscula troca de letras vocalizada, á por é, e segui a leitura, pois algo não compartilhável produziu imediatamente uma incógnita na linha de articulações escritas no texto. O interessante é que nenhum sentido se apresentou diante do acontecimento. Marquei esse ponto de parada produzido pela descontinuidade entre letra e voz, articuladas, com o acréscimo de uma nota sobre meu tropeço ao lado do texto e mantive, com essa estratégia, a inclusão do enigma recém produzido fazendo limite à habitual ligeireza com a qual fomos ensinadas a operar diante de um ato de linguagem – como decifradoras do inconsciente que se apressam em atribuir uma explicação, um sentido, uma tradução rápida demais através de vocabulários e saberes universalizantes, tamponando a abertura produzida por essa outra leitura – que roubou a cena e cavou uma hiância na partilha com a comunidade letrada de analistas.
Um querido colega de escrita que estava presente no local esperou o dia seguinte para tecer seu comentário sobre o que escutou, destacando a troca entre pá e pé. Sorrimos, sem ousar explicar aquela passagem clandestina de uma letra no lugar de outra supostamente referida como original. Ousamos colher o enigma do tropeço e deixá-lo traçado como uma cifra a ser retomada, tal qual certa estratégia de alguns cozinheiros que, ao manejar as receitas de bolo, sabem quais ingredientes precisam ser manipulados primeiro, mas contam com um tempo de ação em reserva para que a mágica de sua química aconteça apenas no final.
Enquanto o tropeço segue repousando em seu tempo de decantação, retomo alguns movimentos anteriores que ofereceram condições para que o equívoco sonoro se materializasse. Meses antes, estive às voltas com uma inquietação acerca do fazer do analista após a escrita de um caso. Me encontrava justamente no não-espaço entre o fim de um desejo de escrita e seu objeto fabricado, e a inquietude criativa que antecede a configuração de um novo desejo. Havia encontrado inspiração em alguns comentários de artistas que discutem a mudança de paradigma em seus estilos após a constatação que um objeto artístico foi finalizado. Depois que o objeto ganha forma e testemunha o trabalho de transformação criadora do desejo, a familiaridade que condicionou sua existência passa a ser estrangeira. A obra passa a pertencer aos que a leem, em descontinuidade com o fazer do artista. O fragmento caído do trabalho constata a mudança no estatuto do objeto, em seu valor artesanal de constituição, flagrando a condição de não-identidade essencial do artista e o pedaço caído de seu trabalho.
Essas reflexões me ajudaram a cernir uma questão sobre os efeitos da escrita de um caso clínico para o analista que escreve, pois se o final de uma análise é figurada pela sempre surpreendente decantação do fragmento do sujeito passante em sua ardente e recém-descoberta agência nomeante e, ainda, através da produção de um saber singular sobre seu modo de existir e criar seus objetos, o que faz o analista com a experiência de resto a qual foi ativamente participante com seus atos, em pura perda de si para que a transferência fosse estruturante para a conclusão do caso? Como, nessa passagem ao próximo trabalho de análise e escrita, manter o espaço aberto para ser a-fetado, aos tropeços, por uma outra língua, mantendo a estrangeiridade necessária para que a destituição subjetiva opere incessantemente, mais ainda?
Antes de enfrentar as consequências de tais inquietudes, chamo atenção para o uso de termos lacanianos em meu léxico, como pura perda, sujeito passante, saber singular, experiência de resto, destituição subjetiva, dentre outros. A língua lacaniana vem sendo repetida em todos os lugares, por tantas pessoas que enfrenta o perigo de ter tornado-se uma suposição universal sem consequências. A pulverização de uma língua abre espaço para que ela seja transformada pelos sujeitos que passam a habitá-la e esse foi um dos desejos de Lacan com seu ensino. No entanto, quando esta mesma língua é usada como puro saber e cristalização de verdades, torna-se um discurso que referenda o pior das instâncias de poder e dominação, como as orações religiosas que são entoadas por hábito, sem as consequências do peso das palavras que elas carregam e incidem naqueles que as proferem.
E não é como se eu estivesse muito interessada em buscar os sentidos supostamente corretos para essas noções, porque teoria só levaria a mais produção de teoria e menos contato com o abismo da/na prática que elas tentam cernir. Também não me interesso por um novo lacanismo mais adequado e adaptado a nossa época, pois uma língua é, sobretudo, “nada além da integral de equívocos que sua história deixou persistirem nela” (Lacan, 1972/2001, p.492). Meu interesse situa-se nas formas de transmissão da experiência de uma analista que opera com seu corpo como estilhaço, desfazendo-se de sua pessoa a cada sessão, para que o sujeito da cena advenha e transforme a presença do analista no semblante de sua causa, até que prescinda deste e passe a-diante.
Não é simples esse ofício de analista. Imaginem poder ser a favor de uma faculdade que ensine a arte do estilhaço de subjetividades como condição de cura do sujeito! Existe um dito popular que alerta para o perigo, em certas situações, quando, ao vestir a roupa de um personagem por muito tempo, correr-se o risco de confundir-se com sua própria ficção. Caso não seja tomada certa distância da performance encenada, o sujeito pode acreditar que é o engano proposto e esquecer das condições para a cena. Em percursos de análises esse fenômeno acontece muito mais do que gostamos de contar.
Durante meu tempo no campo psicanalítico, escutei diversas situações, contadas por analisantes e supervisonantes, de análises que acabaram mal e seus catálogos de constrangimentos. Analistas tornando-se a voz superegóica do analisando, analisantes dependentes de suas análises intermináveis, uma lista de histórias que causaria inveja a roteiristas de filmes de terror. Mas, nem por isso, estou interessada nessas situações para figurar mais uma lista fantasmática de erros possíveis para assombrar analistas em formação. Meu texto começou com um tropeço e com um desejo de transformação do significado geralmente atribuído ao erro em uma errância, esvaziando o uso da moral, sempre marcada por um ideal, que produz toda sorte de inibições, sintomas e angústias no manejo dos analistas. Há, no tropeço, o constrangimento de um analista diante do que erra frente a um ideal de análise, mas há também um ato de errância à espera de ser lido, como sinal de um estilo que escreve sua forma de destituir-se para que a transferência aconteça.
Por isso, a cada ano que passa, observo o excesso de cursos de formação de analistas na feira de psicanálise da internet e me preocupo com esse bando de interessados em psicanálise. Seus mais variados tropeços e constrangimentos, quando não acolhidos, podem virar a causa de suas desistências precoces do desejo de clinicar ou, no pior dos casos, torná-los sabidos em excesso, enrijecidos e cínicos em suas posições zeladoras de poder. De toda forma, essas disputas territoriais na formação nunca me interessaram como campo de trabalho, porque gosto do sabor de acompanhar, acolher, plantar sementes com os interessados em investigar seus próprios desejos com esse ofício, para além do fascínio com o suposto lugar de enriquecimento fácil e atribuição de poderes. Por que, afinal, alguém se interessa por ocupar esse lugar de analista para um sujeito? E por que esse mesmo alguém renova tal interesse ano após ano, caso após caso, experimentando o dissabor que brota da maioria das sessões de análises?
É, me interesso mesmo pelos tropeços. São eles, afinal, que me guiam passo a passo ao próximo caso, ao próximo sujeito, à próxima escrita. Por falar em tropeço, retornemos à troca de uma letrinha que alterou radicalmente meu encontro com aquele texto que eu escrevia, cujo tema era uma inquietação ainda em esboço sobre o desejo do analista, sobre o que ainda resta a ser lido, sobre a transferência depois que um caso clínico se escreve. Sabemos, a essa altura, tanto pelo texto da tese quanto pelo excerto do caso no livro, quais haviam sido os movimentos borromeanos de constituição de uma saída para a analisante, naquele caso. Mas seria possível ler como a analista contou, naquele caso, como objeto em queda constante? Seria possível esmiuçar os tropeços que possibilitaram à analisante sua saída e à analista sua experiência bem sucedida de pura perda de si como uma forma de amor absolutamente nova e irreplicável, aos pedaços?
A palavra “tropeço” é uma derivação regressiva da palavra “tropeçar” e vem do português antigo “entrepreçar”, que por sua vez vem do latim “interpediare”, que significa “impedir, embaraçar”. “Interpediare” é literalmente “trocar os pés”, sendo composto por “inter”, que significa “entre”, e “pés”, que significa “pé”. A palavra “tropeço” pode também significar cepo, ou seja, a parte de uma árvore que foi cortada. É com essa palavra errante que quero convidar você para colocar seus pés no território do nosso Seminário de trabalho em 2025.
Há uma forma de psicanalisar que se ocupa prioritariamente da decifração do inconsciente, considerando portanto, por princípio, que isso é cifrado como uma linguagem cuja língua equaciona o desconhecimento radical de um sujeito da causa de sua existência. Essas cifras se apresentam das formas mais estranhas, como em sonhos, sintomas, acontecimentos de corpo, e ficam à espera de tradução. Jacques Lacan, como um bom freudiano, partiu desse momento crucial para a epistemologia clínica da psicanálise e acrescentou um passo, ao chamar atenção não apenas para o processo de criação de novos sentidos reveladores como formas de cura pela verdade das significações, pois percebia que longas análises produziam saberes infinitos, revelações incessantes, mas não produziam, necessariamente, saídas para o sujeito fazer outro caminho de seu enigma contornado pelo rochedo de castração.
Lacan focaliza a operação de cifragem, associando ao enigma dessas operações as ideias de leitura, tradução e escrita. Assim, o psicanalista constroi um argumento para o final das análises, concebendo-as como momentos em que o ser que fala e troca letras para inventar universos inteiros pode finalmente concluir a transferência ao apreender-se como leitor de sua forma única de escrever saberes e cifras de sua relação com o Outro, incorporado como corpo falante. Esse sujeito passa a-diante com uma chave de leitura, com o segredo de sua senha de passagem para se reescrever sempre que desejar de outros modos e em outros lugares. Esse foi o jeito lacaniano de transformar a saga edípica e seu terror neurótico de nunca querer saber d’isso, sua causa, em um caminho de escrituração de si através das linhas de errância desses sujeitos, seus tropeços.
Portanto, tropeçar não nos leva a pensar nos sentidos que um tropeço pode fundar, mas na literalidade do erro que esconde e apresenta, tão escancaradamente, um modo único de criar realidades. Vamos, então, pelo caminho do tropeço como signo da troca entre os pés, como um corte que uma simples letra trocada produz nos sentidos que uma palavra carrega e pode orientar novas aberturas para outras vias de desejo.
Como tropeçam os analistas hoje? Como suportam o peso das equivocidades que tomam corpo nos acontecimentos da clínica e como manejam a resistência à novidade que elas carregam, tamponada de diagnósticos e sentidos para suas experiências clínicas? Como você tem acolhido, regado e cultivado os tropeços bem aventurados que brotam da boca de seus analisantes?
Espero a abertura na agenda de vocês, sábado dia 15/02/25 às 9h. Serão 9 encontros, um sábado por mês, de fevereiro a novembro, das 9h às 12h. O link de inscrições está na bio do instagram. Espero a partilha com vocês para manejar o risco de-ser que transformou pá em pé na vocalização trocada de uma letra e, também, para colocar em jogo os traços de estilo que atravessam suas clínicas e não esperam por uma interpretação metafórica, mas leitura literal, lituraterra.
Datas: 15/02, 15/03, 12/04, 24/05, 28/06, 16/08, 20/09, 18/10, 22/11/2025.
Horário: 9h-12h Ao vivo e Online.