Autor: Aline Sieiro (Page 2 of 30)

Sobre a educação sexual em 1908

Na reunião de 18 de dezembro de 1907, os primeiros psicanalistas conversaram sobre os traumas sexuais e a educação sexual. Segundo Hitschmann, uma educação sexual se fazia necessária, ao modo de um “esclarecimento”. Steiner, ao final do encontro, afirma que a única educação sexual provém dos traumas. E que uma espécie de “neurose de informação” se apoderou dos homens. Não sei vocês, mas eu acho sensacional observar que: (1) Psicanalistas a trabalho não tem nenhum problema em discordar e fazer isso virar construção teórica e (2) É dos primórdios da Psicanálise a discussão em torno da educação sexual via informação versus a sexualidade como impossibilidade de recobrimento pela razão.

Gracinha demais essas Atas. Recomendo a leitura.

Livro: Atas da sociedade psicanalítica de Viena Vol. 1: Os primeiros psicanalistas 1906- 1908

 

De quem são as histórias que a gente conta?

Tenho pensado demais sobre a escrita e sobre as histórias que a gente conta. Desde pequena aprendi que esse negócio de narrar histórias é importante. Ainda muito nova, acompanhava minha mãe na época de mestrado: ela ia estudar numa sala em que as pessoas contavam suas histórias e sempre saiam chorando. Eu achava aquilo curioso, não entendia como as pessoas achavam bom ir para uma sala, toda semana, contar suas histórias e sempre sair chorando. Minha mãe é pesquisadora e trabalha com pesquisa narrativa. Ainda acho perigoso o trabalho que ela faz (haha #interna), mas hoje entendo bem mais a linha de pesquisa e os objetivos que envolvem esse tipo de pesquisa.

Algum tempo depois, fui secretária de uma psicóloga. Me lembro da sensação que era observar, o dia todo, a entrada e a saída de todo tipo de gente com cara de choro. Ficava fascinada, tentando imaginar o que acontecia lá dentro e que histórias aquelas pessoas contavam. Quando a psicóloga não estava lá, eu entrava na sala vazia e ficava fantasiando sobre aquele monte de gente e suas vidas. Por que raios as pessoas iam lá toda semana e saiam com cara de choro? O que leva alguém a contar sua história e por que isso é importante?

Dos caminhos que me fizeram chegar na psicanálise, esses foram alguns momentos importantes do processo. Hoje sou eu que escuto, vivo e escrevo algumas dessas histórias, para fazer a transmissão da psicanálise via caso clínico. E me pergunto: como contar as histórias que vivo com os analisandos, alunos, supervisionandos, para fazer transmissão do ofício do psicanalista, da importância de tentar nomear algo sobre o irrepresentável da vida e da particularidade de cada um?

Todo psicanalista tem como parte do seu trabalho a escrita de caso clínico, bem como a apresentação de trechos clínicos em eventos. Mas a escrita de um caso clínico, ainda que seja já uma outra versão do que foi vivido entre analista e analisando, é “baseada em fatos reais” (se é que posso brincar com essa frase tanto utilizada nas ficções). Há algo de particular e íntimo sobre a maneira como cada um vive e sente suas angústias que será sempre compartilhado e reconhecível pelo sujeito envolvido. Afinal, não é justamente disso que se trata uma análise? Da maneira particular como cada sujeito põe em movimento sua angústia frente a impossibilidade? Antes da internet, essa questão era facilmente deixada de lado, já que era muito mais simples fazer isso sem se preocupar muito com os efeitos dessa narrativa na vida dos pacientes. Quando contamos um caso clínico, ainda que ela seja uma versão do analista sobre o que ocorreu em análise, ainda se trata do analisando, de sua história e de como ela foi construída com o analista. Freud, mesmo protegendo a identidade de seus pacientes, não conseguiu evitar que soubéssemos que eram. Alguns se revelaram por conta própria, outros eram amplamente discutidos nos meios psicanalíticos e acabaram chegando na boca do povo. Há relatos, por exemplo, sobre a perturbação que foi para o homem dos lobos a publicação de seu caso por Freud; em dado momento chegou a dizer publicamente que só foi usado pela psicanálise e que nunca foi cuidado, crítica que ganhou força a partir da publicação posterior de discordâncias de alguns psicanalistas frente ao diagnóstico freudiano do caso. Controvérsias a parte, há uma questão ética, em diversos níveis, que se apresenta quando contamos uma história. Especialmente quando se trata de um caso clínico de uma análise em andamento.

Em algumas ciências vizinhas, essa preocupação perde o lugar frente a necessidade de ensinar e fazer a ciência evoluir. Pelo bem da ciência, passamos por cima das pessoas. Nossos colegas da medicina, por exemplo, não encontram outras maneiras de realizar seu ensino. Já no passado eram conhecidos pelas famosas cenas de apresentação de caso, aquelas cenas clássicas em que o paciente é exposto em um auditório lotado de estudantes que aprendem. Hoje a cena mudou um pouco sua configuração, mas basta uma visita aos hospitais de residência médica para encontrar por lá a mesma realidade. Em psicanálise a gente não apresenta o paciente dessa maneira tão concreta, mas quando apresentamos os casos clínicos, fazemos uma versão dessa mesma lógica da apresentação dos pacientes. O que nos diferencia? Há diferença? Há.

A escrita de caso clínico, em psicanálise, é permeada por uma ética particular. Esse item merece um texto próprio, que não pretendo responder agora. Passo por esse tema apenas para chegar na atualidade, no mundo em que o google não esquece e tudo encontra. Se no passado a questão já existia, hoje ela é potencializada pela internet. Como escrever e apresentar um caso clínico que pode ser importantíssimo para a transmissão da psicanálise, por exemplo, num caso de paranóia, em que a simples menção a possibilidade de escrita, para o analisando, pode desencadear o próprio processo paranoico? Apostamos no trabalho de escrita como parte do trabalho, ainda que isso possa afetar diretamente a direção de tratamento? Questões, muitas questões que o tempo contemporâneo nos faz repensar sobre a transmissão da psicanálise e na escrita de caso clínico.

Ainda que sejam questões difíceis e impossíveis de universalizar, os psicanalistas seguem escrevendo casos clínicos. Contardo Calligaris, por exemplo, não só escreve sobre seus pacientes, como fez até uma série sobre isso. Ainda que ele misture casos e não fale especificamente de nenhum deles, ele fala de todos eles. Uma amiga psicanalista diz que ele faz sucesso roubando as histórias dos analisandos. Não concordo, mas também não discordo. A quem pertencem as histórias que são vividas por mais de uma pessoa? Como contar da experiência de ser analista e qual o limite do que se conta quando o ser do psicanalista envolve as histórias de seus analisandos?

Outro dia meu filho mais velho “me autorizou” a escrever minha história sobre a maternidade dele. Foi uma história traumática que eu quase nunca conto porque sei que ela envolve nós dois de uma maneira cheia de dor. Ele me disse que eu deveria contar, que eu poderia ajudar as pessoas contando sobre as dores que passamos, pela minha perspectiva. Ele está com 17 anos e passando pela escrita, tentando construir ele mesmo suas histórias e narrativas. Agradeci a autorização que ele me deu, mas minha escrita não passa por esse lugar. Não é da posição de protagonista de uma história que a escrita me interessa. Nesse sentido, entendo que a escrita de um caso clínico, do lugar de analista, não é sobre o que o psicanalista sabe, vive ou sofre. A escrita de um caso clínico e o que se transmite tem a ver com um não saber que é posto a trabalho pelo analisando. Trabalho feito a dois, mas em que o analista é apenas semblante de objeto a, causa de desejo. Assim, como escrever sobre o traumático da vida do analisando para que isso ganhe outras possibilidades de amarração na análise e também na escrita do que foi vivido em análise?

A primeira vez que fui fazer uma pesquisa, ainda na faculdade, eu queria reencontrar ex-pacientes da clínica escola para descobrir os efeitos do processo terapêutico vivido no tempo que eles usaram o serviço. O conselho de ética me proibiu, dizendo que não poderia correr o risco de reviver nos pacientes algo de traumático deles. Mas se um processo terapêutico é justamente o encontro com o real e a possibilidade de borda (e não uma eterna evitação do real), aquela resposta não fazia muito lógica pra mim, já naquele tempo. Eis que hoje me vejo tendo esse mesmo cuidado, não para evitar o encontro com o real, mas para ter responsabilidade frente a maneira como cada um lida com suas questões. Recentemente, fui participar de um evento de psicanálise em que contar alguns casos clínicos faria grande diferença na discussão do tema. A plateia era feita de estudantes de psicologia, em sua maioria, e poder falar com eles sobre teoria a partir da prática é algo que eu acredito e que faz parte do meu estilo na transmissão que faço da psicanálise. Mas cada vez mais me pergunto sobre como falar de pontos importantes de casos clínicos, publicamente, quando esses pacientes (ainda em tratamento) terão acesso. Terão acesso ou por estar na plateia (porque atendo muitos estudantes de psicanálise), ou por esse material chegar na internet. Ainda que tenham autorizado, os efeitos dessa história recontada por mim, na escrita do caso clínico pode afetar diretamente o tratamento e a vida desse paciente, no hoje, no presente.

Questões ainda sem resposta, que vou trabalhando no particular, com cada paciente, quando isso vem a ser uma questão na análise. Cada vez mais entendo que a minha transmissão tem como marca a escrita da experiência, do vivido, do que se faz a dois (e a muitos) quando se fecha a porta de um consultório. Por um tempo achei que isso era muito expositivo, não só para os pacientes tomados como caso clínico, mas também para mim na minha função de analista. Mas, como disse acima, há algo que é necessário se transmitir, sobre uma experiência de análise. E essa escrita leva a marca do analisando, mas leva minhas marcas também. A escrita tem algo mesmo de um traço, do resto e de um efeito do encontro entre sujeito e Outro: algo sempre se perde e fica apagado, mas é impossível remover as marcas particulares de quem fala e de quem escuta. Hoje sei que cada teoria responde a essa questão a sua maneira, inclusive na psicanálise. Mas, mais uma vez, estou procurando a minha maneira de responder a todas essas questões importantes que surgem quando estamos misturados com o ofício e a transmissão da psicanálise. Sobre como cada paciente faz a escrita de sua existência na vida quando não há palavras para descreve-la. Sobre como eu faço testemunho e transmissão desse percurso tão particular. Uma amiga me disse que a gente só escreve em torno do inacessível, de um negativo. É isso. “Não há como entrar na teoria sem passar (e sofrer) os efeitos de um estilo. A inclusão do efeito transferencial no próprio ato de transmissão da psicanálise é o motor do que a impede de ser cristalizada na lógica do discurso universitário” (Leite, N.). Então, vou encarar a passagem pelo escrito. No meu estilo. Me acompanham?

Sobre o aeroporto, um menino e o excesso de bagagens

 

Dessa vez eu estava indo para Cartagena, na Colômbia. Mas quem eu encontrei primeiro não foi nenhum colombiano e nenhuma praia, foi um garotinho lindo e perdido chamado Christopher.

Estava com meus amigos, fazendo check-in no aeroporto internacional de Guarulhos. Fazia muito frio em São Paulo e reparei em uma senhora e uma criança sentados no chão do aeroporto, perto de uma das portas de entrada. Percebi que no guichê ao lado do meu, um senhor, funcionário da companhia aérea, falava alto e resmungava qualquer coisa enquanto se dirigia a senhora e ao menino, que devia ter no máximo sete anos. Algo dessa cena me capturou. O menino parecia perdido, sem saber o que fazer, enquanto sua avó lamentava e o funcionário falava sozinho.

Escutei o funcionário, que me explicou toda situação: a senhora possuía sete malas de viagem e essa quantidade ultrapassava o limite permitido pela empresa aérea. Deveria escolher apenas quatros malas. Frente a esse problema, a senhora sentou no chão, num misto de choro, lamento e incompreensão, sem conseguir escolher. O menino não sabia o que fazer, a não ser segurar sua mochila e um pote de iogurte. E o funcionário da empresa pedia encarecidamente para que ela decidisse, pois perderia o voo. Ele dizia que queria muito ajudar, que era cristão, mas que não poderia fazer milagres. Ela precisava escolher as malas e abandonar algumas. A senhora apenas falava algo que parecia ser francês, mas uma língua-lamento que ninguém entendia, a não ser o próprio menino, Christopher. Ele falava português e tentava traduzir o que era dito para a senhora, e vice-versa, mas parecia muito perdido com o que estava acontecendo.

Conversei com o funcionário sobre quais seriam as possibilidades da senhora, se ela quisesse levar todas as malas. Outra funcionária se aproximou e disse que ela poderia pagar a multa por excesso de bagagem e levar todas as malas, mas quatro delas iriam como mala de mão. Conversei com Christopher, pedi para ele tentar explicar a situação para a avó (já que ao tentar conversar com ela, não nos entendíamos). Ele conversava com ela, mas parecia envergonhado. Não traduzia para nós o que ela dizia. Logo fui entendendo que ela não tomaria nenhuma decisão, que ficaria ali em seu lamento e isso parecia deixar Christopher totalmente sem ação. Perguntei a ele se ela tinha dinheiro. Ele conversou com ela, e ela me entregou alguns dólares e reais. Fizemos os cálculos e percebemos que aquele valor pagaria o excesso de malas.

Com o dinheiro, pagamos a multa para as malas. Seiscentos reais. Muito dinheiro!! E mesmo assim uma mala ficaria no aeroporto. O que estava naquelas malas parecia ter muita importância para aquela senhora. Com isso resolvido, precisávamos abrir as malas que seriam levadas na mão para tirar objetos que poderiam ser barrados, como líquidos e comidas. Pedi ajuda ao menino para abrir as malas. Fizemos tudo isso enquanto a senhora já lamentava menos, mas apenas observava a movimentação com as malas. Quando ele abriu as malas, tudo que vimos eram coisas muito simples: brinquedos que pareciam ter saído das lojinhas de R$ 1,99; vestidos de tecido barato; sapatos aparentemente comprados na 25 de março; enfim, tudo muito simples. Nada daquilo valeria os seiscentos reais da multa. Algumas fotos caíram da bolsa da senhora e logo fomos percebendo que o valor daqueles itens não era mesmo financeiro, mas sim afetivo… A cada item que tirávamos da mala, porque não poderia ser levado, a senhora chorava e lamentava, mais uma vez. Parecia que estávamos tirando pedaços do corpo dela. Christopher estava inquieto, por vezes embotado, mas seus olhos não me enganavam: estava triste, perdido. A única coisa que disse que é que levaria sua mochila com seus brinquedos. Assim, tiramos diversos objetos e entendi que precisaríamos carregar este menino e essa senhora até a sala de embarque, pois eles não dariam conta nem do peso das malas e nem do peso emocional, seja ele qual fosse.

E lá fomos nós, eu e meus amigos, carregando as malas do menino e da senhora. Eu tentava entender o que estava acontecendo, indignada por pensar que haviam deixado aqueles dois no aeroporto naquelas condições. Mas, algo mais importante estava acontecendo ali. Mesmo sem entender nada, eu já estava extremamente tocada por essa confusão e fiquei ao lado do menino e fui tentando conversar. Perguntei quem ela era e descobri que não era avó, era uma tia. Descobri também que ele estava deixando pai e mãe no Brasil (e por isso muitas vezes olhava para os portões do aeroporto, parecendo em busca de alguém); que estava indo para Porto Príncipe com a avó morar lá, mas não sabia porquê. Basicamente, ele não sabia porque estava indo viajar, parecia não ter muita intimidade com a tal tia e quando mencionei os pais, sobre saudade e afins, ele quase chorou e não quis mais conversar. O que ficou claro é que ele realmente não estava entendendo muito tudo que estava vivendo, mas sabia que estava indo embora morar em outro país.

Ao entrar na sala de embarque, pude pegar os documentos e passaportes dos dois. Os passaportes eram franceses. Não entendi como ele poderia ser brasileiro com passaporte francês, mas achei que se tivesse algo de errado com essa viagem, aparecia na hora que passássemos na policia federal. Passamos e nada aconteceu. Qualquer que fosse a história de Christopher, estava legalizada. Deixamos os dois na frente da sala de embarque. Estávamos exaustos, física e emocionalmente. De longe, observei o menino e percebia o quanto ele parecia sozinho, triste, perdido. Minha vontade era de ficar do lado dele e conversar mais, mas entendi que dali pra frente eu não poderia mais fazer muita coisa por ele. Segui meu caminho.

Quando eu sai de casa, naquele dia, sabia que estava indo para Cartagena, mas não sabia o que estava indo encontrar. Gosto de viajar porque no mundo a gente vive os encontros e desencontros com os mais variados tipos de pessoas e culturas. Porque a vida é feita disso, de movimentos, encontros, desencontros e o que a gente faz com tudo isso. Meu encontro com Christopher nunca mais será esquecido. Ficou um aperto no peito, das tantas histórias que nunca sabemos dessas crianças vivendo as coisas mais doidas pelo mundo. Eu sei que não fiz nada por ele, mas tentei pelo menos estar lá por alguns minutos para construir algum movimento a partir de tanto absurdo e nonsense.

Um dia desses, ao participar de uma palestra sobre a formação em psicanálise, um rapaz me pediu um abraço, mesmo sabendo que “psicanalistas não abraçam”. Circula por aí essa ideia de que o psicanalista lacaniano é frio, arrogante e tantos outros adjetivos peculiares. É tudo verdade. Tem uma hora da vida que é preciso decidir e fazer uma aposta: ou você fica com pena e chora junto com sobre os lamentos da vida, ou você trata as pessoas e as situações com a seriedade necessária, e faz um ato. Quando você fica com pena de alguém e se identifica, entende, você não ajuda. Afeto pra mim não é ter dó, não é agarrar, não é ficar dizendo que ama. Cuidado não é narcísico, não é algo que a gente faz por imagem ou conforto. Topar um laço com um estranho, numa situação estranha, de angústia e desconforto, simplesmente porque aquilo parece que é o que precisa ser feito para que alguém possa, talvez, sair de uma situação de angústia e paralisia, isso pra mim é o caminho do cuidado, do afeto, do laço social. Atos que construímos frente ao nonsense e a impossibilidade da relação sexual.

Eu não faço ideia do que eu fiz ali com aquele menino e nunca vou saber. Mas eu sei que algo aconteceu. E sei que preciso deixar essa marca escrita e registrada, sobre a possibilidade de um encontro no meio do caos. Quando eu vivo e viajo, é pra viver esse tipo de encontro com a vida, com o estrangeiro familiar: pra inventar algo e continuar vivendo. A vida é um eterno não saber em sua relação com o tempo e o espaço. E com as pessoas.

São Paulo e seus RoboCops

Minha saída de São Paulo foi fundamental no meu processo de humanização. Isso mesmo que você acabou de ler. São Paulo transforma as pessoas em máquinas. E do pior jeito, disfarçadas de alternativas, livres, descoladas e intelectuais. Mas na primeira esquina, topando com o primeiro mendigo, tudo isso cai por terra.

No remake do filme RoboCop (esse mesmo, rs), tem uma cena em que o cientista explica o que acontece para justificar a excelência do homem-robô:  ele parece humano, mas a máquina consegue controlá-lo de uma maneira que ele acredita ser responsável por seus atos. O chip colocado em seu “hardware” (cérebro), induz a crença da consciência e do livre arbítrio, mas que na realidade não o tem.

Se já não é trabalho suficiente sermos habitados pelo nosso inconsciente e sermos estranhos em nossa própria morada (um outro papo em outro texto), acrescente a este drama humano a crença cega de uma pessoa em sua própria fantasia, já que ela parece garantir um melhor jeito de lidar com o mal-estar da civilização (sendo bastante freudiana). O “ser paulistano” é tão seguro de si e bem resolvido, que no primeiro topão com o real, com a vida como ela é (o mendigo, o drogado, a passeata, a paulista fechada, etc.), tudo desmorona facilmente e desencadeia todo tipo de resposta violenta contra isso que o tira do seu caminho.

Não é preciso sair de São Paulo para dar de frente com o desmonte da Matrix. Alguns guerreiros pretendem implodir essa lógica paulistana de ser por dentro. Confesso que não fui tão forte. Sai do Rio de Janeiro com apenas oito anos e me apaixonei por São Paulo. Foi lá que eu entrei na classe média. Foi lá que eu construí minha identidade paulistana. Foi lá também que eu sofri todos os preconceitos do mundo. Eu costumava ter um discurso pronto sobre como essas situações fortaleciam meu caráter. Dizia que me faziam mais forte, mais tipicamente paulista. Nada mais paulistano, não é esse o discurso? São Paulo ensina as pessoas a trabalhar, a não reclamar, a provar o funcionamento da meritocracia. Ao custo de muito sofrimento psíquico, sem dúvida. Tudo isso é extremamente violento, mas essa parte ninguém conta. Assim como os boletins de ocorrência são mascarados, uma espécie de cortesia e prestatividade funcional escondem as grandes violências contra as minorias. E São Paulo é lotado delas, o que é mais curioso!

Mas então o que acontece com a gente, em SP? Já dizia Criolo: não existe amor em SP. Ficamos igual o RoboCop. Acreditamos na suposta escolha de uma maneira de viver e fazer as coisas, mas é tudo parte de um jeito de uma lógica social que é violenta e apagadora da diferença. Posso afirmar sem medo que São Paulo me ensinou tudo que sei hoje sobre a vida, mas me tornei extremamente babaca no processo. De origem simples e sempre interessada por aquilo que a sociedade considera resto, durante anos (mais de vinte) acreditei e reproduzi todos os grandes chavões paulistanos.

O mais difícil tem sido me reconhecer em tudo isso. Eu também sou parte dessa SP, ela é estranhamente familiar todo mês, quando retorno para visitar. Mas tem algo que já não produz mais laço e que vai resultando apenas em um mal-estar e um gosto amargo quando, andando por lá, encaro de frente toda essa babaquice que não é possível de ser isolada do jeito paulistano de ser.

Nasci no Rio, cresci em SP, moro em Minas. Quando me perguntam de onde sou, não sei o que dizer. Sou de todos esses lugares e de nenhum deles. Mas definitivamente São Paulo é aquele relacionamento abusivo que é instaura um antes e um depois. São Paulo me estruturou e me arrebentou na mesma proporção. Mas fiquem tranquilos. Esse não é um texto de ódio a São Paulo. Pelo contrário. Depois de comer e me fartar tanto desse prato, estou aprendendo a lidar com a indigestão que restou. Dá uma vontade enorme de salvar aquele pedaço subversivo que também é marca de São Paulo, uma São Paulo dos becos mais estrangeiros dessa cidade. A paulista fechada aos domingos é essa subversão escancarada.

Assim, compartilho do meu trajeto para dizer que conhecer o Brasil pode fazer muito bem ao paulistano. Todos nos alienamos a alguma referência e ela sempre será fortíssima, mas é importante nos permitir a aventura pelo que não sabemos do nosso Brasil, nosso pais marcadamente diferente. E não me venham com mais um chavão tipicamente paulistano “ame SP ou deixe-a”! A vida é um eterno ir e vir. Paulistano nenhum vai mudar o fato de que essa cidade foi feita pra circulação dos mais variados tipos de gente. São os paulistanos que esqueceram de circular! Vocês que me perdoem, mas esses são alguns dos caminhos da torção pra SP e para todos os paulistanos!

poesia

O balé e a questão dos gêneros

Estive em um evento organizado por uma escola de dança da minha cidade. Foram vinte e cinco apresentações de balé, jazz e outras danças que fazem parte da tradição de muitos meninos e meninas na infância. Eu e Anna (que nunca nos identificamos com o balé) não conseguíamos deixar de nos questionar sobre os diversos aspectos da educação do balé nas nossas infâncias. Na minha época, por exemplo, para fazer jazz ou alguma aula de dança moderna, as crianças eram obrigadas a cursar balé como pré-requisito para cursar outras modalidades. A desculpa para essa obrigação se pautava na premissa de que o balé insere as bases sobre postura, relação com o corpo e sobre teorias básicas da dança que serão necessárias para qualquer outra dança. Sei que essa premissa ainda é forte porque, recentemente, ouvi uma professora de dança da UFU questionando essa maneira de ensinar a dança na atualidade. Ela defendia a possibilidade do ensino da dança a partir de diferentes premissas sobre a relação com o corpo, não necessariamente a partir da tradição do balé. De qualquer maneira, o que foi ficando evidente, a cada dança que acontecia no evento, era que o tradicionalismo não estava somente na ideia de educação do balé, mas sobre o que essa perspectiva de ensino entende sobre corpo e sexualidade.

Preocupadas com as questões de sofrimento de gênero na infância, nos questionamos: Por que a função do bailarino (quase sempre) é ser “aparador” da bailarina? Por que todas as bailarinas são meninas? Por que todos os bailarinos são meninos? Para tentar elaborar respostas possíveis, peço para vocês me acompanharem no raciocínio abaixo, com ajuda da tabela.

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A criança está no tempo de constituição da sua relação com o seu corpo. A maneira como cada criança vai lidar com seu corpo e sua sexualidade não é dada, não nasce como uma verdade, um saber pronto. A única coisa que nasce com cada criança são suas marcas genitais, ou seja, o corpo biológico (que obviamente marcam uma diferença e impossibilidade, mas que nada dizem sobre a invenção que cada pessoa vai precisar construir sobre esse corpo-organismo em funcionamento).

Se a criança está em pleno processo de invenção da sua relação com o seu corpo, esse tempo é bastante influenciado pelo seu contato com o social, ou seja, todos os discursos sobre corpo e sexualidade que a antecedem. Desta forma, os adultos que estão no entorno de uma criança contribuem direta e indiretamente para as diversas maneiras que uma criança pode ou não circular na descoberta de seu próprio corpo e sexualidade. A questão vem sendo o fato de que, tradicionalmente, não é permitido que a criança de fato circule e faça invenções. Já são oferecidos a elas papéis claros sobre o que é esperado, sobre quem deve ser a bailarina e sobre como deve ser o bailarino. Para algumas crianças, tudo isso funciona muito bem; mas para outras crianças, a exigência de uma resposta fixa e precoce sobre esses papéis produzem sofrimentos psíquicos intensos.

Voltando ao quadro, uma criança que está no tempo de encontrar uma identificação de gênero para si, não necessariamente vai desenvolver expressões de gênero combinadas. Uma criança pode se reconhecer como menina e ter comportamentos de menino; pode ainda se reconhecer como menino e ter comportamentos de menina (e ainda não estamos falando da combinação disso com os genitais). Assim, (1) é possível que um menino possa ter o desejo de ser a bailarina, sem ter comportamentos femininos? (2) É possível que uma menina possa ter o desejo de ser o bailarino, sem ter comportamentos masculinos? (3) É possível que um menino com comportamentos femininos, possa ter o desejo de ser bailarino? (4) Ou bailarina? (5) E o mesmo para a menina? Como vocês podem perceber, os desdobramentos são diversos! E ainda estamos fazendo apenas o cruzamento entre as questões de identidade e expressão de gênero.

Se é possível que uma criança circule em diversos papéis identitários, podendo ser bailarina ou bailarino independente da sua sexualidade, porque insistimos em achar que essas questões serão o ponto de decisão sobre a sexualidade de uma criança?

Mas as questões não param por ai. Um menino que se identifica com a feminilidade, poderia ele também, ser bailarino ou bailarina, independentemente. O mesmo vale para a menina. (6) Poderíamos, ainda, ter um casal de bailarinos formados por dois homens ou duas mulheres, ainda marcados por uma diferença com relação a posição feminina e masculina.

E se quisermos complicar um pouco mais as questões, inserindo a sexualidade na questão, podemos ainda encontrar (7) um menino que se define como homossexual desejando ser o bailarino, e (8) a menina homossexual desejando ser, mesmo assim, a bailarina. As imagens atreladas aos gêneros também não são óbvias; (9) teremos homens gays que desejarão ser bailarinos ou bailarinas e (10) meninas lésbicas que desejarão ser bailarinas ou bailarinos. E, por ultimo, podendo ser bailarino ou bailarina, (11) observaremos bailarinos (meninos ou meninas) desejando dançar com seu similar e não com seu oposto.

A diversidade é tão grande que assusta muitos professores e adultos. Como lidar com tantas possibilidades? O fato é que continuamos não encarando essa realidade plural, de forma que em uma apresentação de duas horas e meia, com vinte e cinco danças, tudo por ali continua sendo tão… tradicional.

Eu e Anna saímos da apresentação entendendo porque largamos o balé tão cedo. Talvez ele não fosse tão aberto a nossos desejos do tempo de infância, marcando, para nós, a sensação de que ali não cabíamos… “Ah, mas se tivesse sido diferente, talvez ainda tivéssemos dançado!” Nunca vamos saber e nem importa mais, pois encontramos em outros lugares essa abertura para a construção da nossa relação com o corpo. Mas muitas crianças não encontram esses espaços. Como podemos pedir que professores permitam a transmissão dessa possibilidade de invenção para crianças quando eles mesmo ainda não criaram essa relação com o próprio corpo? Por onde começamos, então?

 

 

Indicação de filmes sobre o tema:

Romeus

Tomboy

Billy Eliot

Cinco gerações de mulheres em um jantar de família: histórias de horror sobre o assédio sexual

silencio

Estava em um jantar de família com cinco gerações de mulheres: minha avó, minha mãe, minha madrasta e minha prima mais nova. Conversávamos sobre as diversas experiências de assédio que vivemos durante a vida e chegamos a uma triste conclusão: parece que o que foi vivido por minha avó ainda é a mesma realidade vivida pela minha prima. Em relação ao assédio, parece que nada mudou. Compartilhamos narrativas e histórias de homens que, diariamente, mostram seus pintos na rua, roçam seus membros no nossos corpos no metro, passam a mão um pouco a mais até na hora da tatuagem e do exame médico. As situações são tão cotidianas que nos acostumamos a conviver com os sentimentos de vergonha, humilhação e medo.

Outro dia escutei alguns homens dizendo que as mulheres estavam exagerando nas redes sociais; eles diziam que os relatos nas hashtags #primeiroassédio #meuamigosecreto estavam passando dos limites: “ninguém aguenta mais escutar esses mimimis”, eles diziam. Outros diziam que rede social não era lugar para esse tipo de história ou desabafo. Quero dizer para vocês, queridos homens, que se fossemos realmente contar todas as situações de assédio que já passamos, não ia ter rede social que desse conta das repetidas histórias que não cessam de se apresentar em nossas vidas todos os dias, há anos e anos. Se vocês estão cansados de ouvir algumas delas, imagine o quanto nós estamos cansadas de vivê-las; o quanto nos apavoramos quando, num jantar em família, percebemos que muitos anos se passaram e nada disso evoluiu. O machismo está ai para nos aterrorizar sim, todos os dias, quando temos medo de ir fazer xixi na universidade porque sabemos que estudantes de engenharia, medicina, filosofia (e vários outros cursos), ainda hoje, estupram colegas de sala em bandos; quando trabalhadores da construção civil ainda se sentem no direito de abaixar suas calças em plena luz do dia; quando o pai do amigo do seu filho fica te olhando com aquela cara nojenta de tesão enquanto mexe a língua, te comendo com os olhos, em público.

Eu acho é pouco esses relatos. E sei que ainda temos muito medo de dizer nomes, fazer denúncias, porque nunca temos como provar. Pior ainda é quando a retaliação vem das próprias mulheres e de nossos familiares. Até mesmo de alguns analistas que insistem em usar a máxima “somos sempre responsáveis pelos nossos sintomas” para fazer valer o ponto de que, sempre, a culpa é da vítima, se esquecendo que somos inseridos em uma relação direta com a cultura que nos antecede, de um machismo poderosíssimo e muito difícil de derrubar. Vitimismo, vocês podem pensar! Talvez. Algumas mulheres se posicionam mesmo nesse lugar, vivendo e se alimentando dessa devastação por anos e anos. Mas, infelizmente, muitas mulheres nunca tiveram possibilidade de construir outro lugar que não esse que sempre nos foi oferecido de bandeja, gerações após gerações, como o lugar de mulher. Então, eu acho é pouco mesmo a quantidade de narrativas de assédio. Porque quando falamos, fazemos o mal estar surgir e tentamos finalmente sair da posição de vítimas, possivelmente nos tornando agentes de alguma mudança. A idéia é mais ou menos assim: ou vocês encaram o mal estar junto com a gente, para podermos mudar alguma coisa nos próximos anos, ou tudo vai continuar sempre sendo apenas histórias silenciadas, segredos de mulheres em seus jantares de família.

O enigma do feminino

Quanto eu tinha 12 anos, várias meninas da minha escola cortaram seus cabelos no corte Joãozinho. Elas começaram a aparecer, dia após dia, sem os cabelos enormes que carregaram por muitos anos. Eu me senti fascinada e ao mesmo tempo intrigada pelo movimento. Até hoje não sei quais foram os motivos que levaram cada uma delas a cortar os cabelos, mas me lembro de explicações que surgiam para dar conta da novidade. Uma era do teatro, diziam. Outra era “meio masculina” e uma deles gostava de meninas. Cada resposta parecia apresentar uma fantasia sobre o significado do cabelo curto, mas para algumas meninas as explicações não colavam. Elas estavam mais femininas do que nunca com seus cortes curtos; era simplesmente inexplicável para muitos que isso pudesse ser possível. Algo sobre um enigma em relação ao feminino era evidenciado apenas a partir de um corte de cabelo, e eu me perguntava como algo tão simples podia perturbar e chamar atenção de tantas pessoas.

Os anos passaram e um dia desses eu estava conversando justamente sobre cabelos com um conhecido. Escutei ele dizendo que Paula, uma conhecida nossa, estava em um processo intenso de enfeiamento. Paula usa muito o twitter e vem escrevendo sobre um processo de transformação da sua imagem. Tenho a impressão que Paula vive muito mais do uma troca de imagem, mas não posso falar sobre isso, pois não faço parte do que está acontecendo com ela. O importante aqui é destacar que, no twitter, vai ficando evidente a maneira como ela vem vivendo toda essa transição a partir da imagem. Durante um ano, Paula foi deixando de pintar os cabelos, assumindo a cor natural. Alguns meses depois, começou a questionar a importância de manter os cabelos lisos as custas de muitas horas perdidas com chapinha e secador. Passou a assumir também seus cabelos cacheados. Depois de algum tempo, decidiu aderir as sapatilhas e tênis porque não aguentava mais as dores nas pernas por conta dos saltos. Paula começou também a ser mais socialmente ativa no twitter, defendendo opiniões polêmicas sobre diversos assuntos. Não demorou muito para que as pessoas começassem a dizer que tudo isso estava relacionado ao processo de tornar-se feminista, ou, como disse meu conhecido, sobre o processo de se tornar mais feia. Nunca vi Paula tão feliz e feminina. Assumir sua posição em relação ao seu corpo e ao seu jeito de estar na vida tem sido bonito de se ver. Por que a beleza da invenção de cada um, fora do padrão, incomoda tanta gente?

Não somos ingênuos em relação aos fetiches, todo mundo tem suas preferências sexuais e seus fetiches em relação ao objeto de interesse sexual. Alguns homens foram se desinteressando por quem Paula estava se tornando, porque ela já não carregava mais alguns traços que permitiam a esses homens depositar suas expectativas e fantasias sexuais. O que parece ser frustrante para esses homens é que cada vez mais mulheres vêm vivendo processos como esse, descobrindo que não precisam ser um estandarte da fantasia masculina. As mulheres vem descobrindo que podem ter suas maneiras singulares de lidar com seu estar no mundo, com o ser mulher, e que o importante em um relacionamento, mais do que ser apenas depositária das fantasias alheias, é encontrar seus próprios sentidos e caminhos para ser mulher no mundo, mesmo que fiquem em falta com o outro. Alguns homens não estão gostando de ter cada vez mais restrito o número de mulheres que se oferece desse lugar adaptativo; também não estão gostando de encarar suas frustrações pelo fato (importante) de que suas fantasias nunca encontrarão o objeto ideal, já que há uma impossibilidade que marca o (des)encontro com o objeto de nossas fantasias, simplesmente porque ele não existe.

A feminilidade, ou melhor, aquilo que entendemos como identidade feminina é tão diversa que não seria possível descrever suas características. Porém, ainda sustentamos socialmente um ideal sobre feminilidade que foi construído as custas de mulheres como depositárias das fantasias impossíveis. E as mulheres acreditaram nisso e contribuíram muito para que esse engano fosse sustentado. São anos tentando ser sexy (sem ser vulgar), potente (sem deixar de lado o maternal), ativa (em sacar o desejo do homem), ou seja, diversas situações para tentar realizar o encontro impossível entre fantasia e realidade. A relação entre duas pessoas, baseada em uma teoria de amor (e sexo) que busca completude está fadada ao eterno desencontro ou ao apagamento de um para a satisfação do outro. As mulheres estão cada vez mais se permitindo encarar essa impossibilidade, de se apagar para ser quem o outro precisa; de tornar-se mulher e deixar os fracassos desse ideal de amor escancarado.

A idéia de feminino, ou seja, de algo que tem a ver com o que não está posto na identidade mas que nos causa enquanto mulheres, essa idéia ainda vem sendo explorada pelas mulheres e pelos homens. A noção de que somos divididos, faltosos, e que não será um outro que nos completará, aponta para uma relação não mais centrada em um ideal de completude e sim para o avesso disso: é a partir do que falta que será possível construir laços afetivos. Assim, o feminino não tem a ver com potência ou poder, mas com a ausência de um símbolo ou de um objeto e de como fazemos isso nos movimentar na vida; Como cada mulher lida com seu processo de tonar-se mulher e como vai se relacionar com outra pessoa a partir disso. É um processo particular e árduo. É uma construção, as respostas não existem prontas. E quanto mais as mulheres se permitem vivenciar tudo isso, mais elas deixam os homens em contato com o que de feminino também há neles, ou seja, com o enigma sobre seu desejo, suas fantasias de completude e sua relação com a impossibilidade.

Existe algo para além do sexo. Existe algo para além de olhar o outro como objeto de seus fetiches. Existe um tipo de relação estabelecida a partir do que o outro não é e nunca será pra você. Alguns chamam isso de amor, o ato de desejar e aprender a estar com alguém pela vida, caminhando em conjunto, redescobrindo o encontro sexual a partir dessas possibilidades. Isso pra mim é o que embasa o discurso de igualdade de gêneros. Não é sobre poder, sobre quem pode mais e quem vai controlar o outro da relação com objeto. É sobre duas pessoas que são faltantes, por isso semelhantes, tentando construir relações que permitam invenções causadas pelo que falta de maneiras criativas, diversas e sempre em movimento. A fixação na idéia de que o outro deve te dar aquilo que te falta sempre fracassa porque ninguém consegue ser apenas uma imagem para o outro o tempo todo. Ainda bem! E a agressividade que as pessoas andam direcionando umas para outras ilustra bem a raiva que é provocada quando, cada vez mais, as pessoas se autorizam a não ser apenas o que os outros esperam que elas sejam.

O feminismo promove a noção de que todos temos direito de entrar em contato com nosso enigma sobre o feminino que nos habita. Não é sobre defender uma identidade padrão, não é sobre empoderamento de um gênero ou outro, mas sobre estar nas relações com o outro a partir da impossibilidade de completude e da falta de poder. Amor não é sobre poder. O que faz laço entre as pessoas é o cuidado e o afeto que podemos construir a partir das nossas mais profundas fragilidades e não de quem consegue ter mais poder sobre a fragilidade do outro. Feminino não tem a ver com a identificação a um ideal, seja ele qual for (inclusive sobre um jeito certo de ser mulher), mas sobre construir uma resposta ao engima da vida e das relações humanas.

Outro dia, Laerte disse que seu processo de transição está acontecendo, do masculino para o feminino. Será que não somos todos assim, um processo eterno de construções e desconstruções? Será que o feminino não tem a ver justamente com essa descoberta de si mesmo e de como estar no mundo a partir dessas descobertas? Cada um de nós terá que dar suas próprias respostas.

Paula não está “enfeiando”. Paula está dando sua própria resposta ao seu enigma sobre o feminino. As meninas que acompanhei cortando seus cabelos Joazinho provavelmente também estavam se permitindo passear nas diversas identidades, para encontrar suas próprias maneiras de responder a essa questão. Isso parece ser o mais fascinante e bonito em todas elas. Mulheres que se permitem inventar. Uma pena que ainda estamos tão presos na fetichização do outro, sem conseguir enxergar além disso. Homens que também se permitam inventar talvez possam nos ajudar a construir um mundo com as mais diversas belezas possíveis, em suas diferenças.

A publicidade e o fracasso dos ideais

Nosso tempo contemporâneo, seja ele pós-moderno, hipermoderno ou o fracasso da modernidade, é um tempo de descontinuidade. Ficou no passado o período em que determinados ideais reinavam imperiosos oferecendo suas certezas, ainda que não inclusivos e para poucos. Para a maior parte das pessoas, as nomeações tinham um efeito de sustentação desses ideais, bastava nos adaptarmos a eles. Nos formulários, por exemplo, você escolhia se era do sexo feminino ou masculino, se era solteiro ou casado, escrevia o nome do seu pai e da sua mãe, dizia a cor da sua pele. Tudo parecia muito simples.

Hoje as respostas já não são mais tão simples. Estamos no cerne de longas e profundas transformações sociais advindas especialmente dos que se sentiam excluídos por esses ideais e nomeações, ou seja, do que ficava de fora. A parcela de pessoas que ficava excluída e “sobrava” era muito grande, mas não tínhamos ainda espaço para lidar com esses números. O fato é que o ideal era para poucos e o que ficou de fora por muito tempo, retornou demandando reconhecimento. O que ficou de alguma maneira excluído da possibilidade de nomeação, insiste para ter seu espaço. Assim, temos vivido uma enxurrada de novas possibilidades de identificações e renomeações, na busca por evidenciar a pluralidade de diferenças. Não é mais tão simples preencher no formulário o nome do pai e da mãe, porque passamos a ter famílias com duas mães e/ou dou pais. Fazer um x no espaço que identifica nosso gênero, por exemplo, ficou complicado para algumas pessoas trans que ainda não sabem como devem se identificar entre as opções masculina e feminina. De alguma maneira, tudo como conhecíamos vem sendo descontruído e reconstruído de uma maneira inquietante e veloz. As siglas aumentam, as nomeações aumentam e mesmo assim fica a sensação, no final do dia, que nada disso ainda é o suficiente para dar conta da diferença, anunciando que muito mais está por vir.

Toda essa avalanche de situações e novidades apresentam novos dilemas, ninguém se salva. Como se referenciar a homens e mulheres quando essas duas categorias não parecem mais ser suficientes para distinguir as pessoas? Como reconstruir nossos lugares sociais, nossos ideais e fantasias quanto tudo está mudando tão rapidamente e as pessoas ainda não conseguiram apreender a importância dessas tentativas (muito mais do que o sucesso ou o fracasso delas)?

No meio dessa confusão, publicitários, grandes vendedores de imagens, tentam encontrar um porto seguro para trabalhar. Quando as imagens de um ideal passam a não servir mais, outras imagens tomam a frente, em uma quantidade impressionante. Por trás de toda imagem vendida por um publicitário, existe um ideal atrelado. Assim, aprofundar-se no que está sendo vendido é importantíssimo para um profissional ter sucesso na venda de suas imagens e ideais. Não basta mais fazer uma promoção em que a mulher ocupa um lugar secundário, de esposa ou mãe. Esse ideal já não corresponde a maior parte da realidade das mulheres hoje. Usando ainda o exemplo das mulheres, elas têm se permitido construir diversos espaços para ocupar e representar. Portanto, como fazer uma propaganda voltada para o público feminino que possa incluir a vasta dimensão do que é ser mulher hoje?

A partir de questões que não possuem respostas fáceis, muitas pessoas tem se implicado, dedicando tempo, estudo e criatividade para construir propagandas que possam ser inclusivas, ou seja, buscam achar soluções que permitam diversas possibilidades e que de alguma maneira não ofendam gratuitamente a nenhum grupo específico. É uma missão dificílima, já que tudo se parece muito com um terreno em erosão. Os publicitários engajados já sacaram que uma propaganda nunca será apenas uma propaganda inocente; que questões políticas estão mais presentes do que nunca e que não podem simplesmente ser deixadas de lado. Mas nem sempre é assim. Infelizmente.

Essa semana, tivemos um exemplo de como uma propaganda infeliz pode ter um desfecho trágico. Uma churrascaria publicou em sua página do facebook uma propaganda que pode nos ajudar a pensar no que estamos colocando em pauta. A propaganda era a seguinte:

Propaganda 01

Em uma primeira olhada, não observamos nenhum crime ou afronta gritante acontecendo na propaganda. Percebemos que o desconto é proporcionado de acordo com o gênero da pessoa que se apresenta no estabelecimento e isso gera algumas questões. Ao meu ver, nada que não pudesse ser esclarecido de uma maneira tranquila e inteligente, ainda que pautado em um ideal que hoje fracassa. Sabemos que a questão dos gêneros é um assunto extremamente atual e suscita paixões e questões importantes, como, por exemplo, sobre o lugar da mulher em uma sociedade ainda extremamente machista. Logo, o esperado aconteceu: algumas mulheres questionaram o motivo do desconto apenas para mulheres. A questão é bastante pertinente para os tempos atuais. Mas parece que não foi isso que os responsáveis pelo anúncio pensaram. Frente a questão, sobre o que faria mulheres “merecerem” pagar mais barato, a discussão ferveu nos comentários da página. A discussão entre os usuários caminhava para: (1) a mulher não “merecer” mais ou menos do que homens, já que a luta pela igualdade de direitos defende essa postura; e (2) usar a idéia de gênero para justificar uma meritocracia está fracassada como ideal na atualidade e sempre gera mal estar. Ao invés de encarar o mal estar já instalado, o restaurante decide:

cancelamento e mimimi

A partir do posicionamento acima, o que era apenas um caso de propaganda mal planejada passa a ser uma questão de descaso com possíveis clientes. Responder a inquietações de algumas possíveis clientes foi tomado como bobagem, “mimimi”. O texto ainda deixa claro que, na ética da empresa, vale tudo para conseguir atenção, a qualquer custo. E já que o objetivo foi atingido (“o restaurante está cheio”), as questões políticas suscitadas pela propaganda não passam de “blá blá blá”.

Estamos todos vivendo no tempo da inexistência de uma suposta neutralidade: tudo é posicionamento político, inclusive a decisão por não participar ou por permanecer em silêncio. Fazer pouco caso da problematização de algumas pessoas não poderia ter sido mais infeliz. O restaurante poderia ter saído dessa sinuca de bico de diversas maneiras, mas preferiu agir com deboche frente a uma questão que é muito séria para alguns. A partir disso, o tom de guerra já estava instalado.

Não satisfeitos com o resultado da avalanche de críticas frente a propaganda e o posicionamento do restaurante, eles novamente mudam seu posicionamento, mas dessa vez para explicitar a posição política:

Reiteração da propaganda machista

“Apoiamos medidas que confortem às famílias nesta crise, PRINCIPALMENTE OS PAIS DE FAMÍLIA que somando os gastos DA ESPOSA E FILHAS acabam muitas vezes deixando de participar do almoço de confraternização apenas pelo preço”.

Aqui nesse trecho fica evidente a posição política e o ideal que sustentaram a propaganda desde o início: a cena de uma família em que o homem sustenta a casa e suas mulheres (esposa e filhas) e que por isso deve ganhar desconto para pagar por elas. Reparem ainda que a imagem usada, das mulheres com coraçõezinhos, só reforça um outro estereótipo sobre mulheres, que elas se reúnem apenas para falar de suas paixões e romances).

A frase e a foto carregam um ideal tradicional e machista que vem sendo insistentemente desconstruído ao longo dos últimos anos. No quesito família, já aprendemos que as famílias hoje são de diversas formas: mães solteiras, dois homens, duas mulheres, enfim, diversas apresentações que não se enquadram nesse ideal de família descrito. No quesito gênero, existem diversas famílias que são sustentadas por mulheres e diversas outras famílias em que o casal divide igualmente suas despesas, ou seja, o gênero já não define mais claramente o lugar da mulher nem do homem nas relações. No que tange a foto, sabemos que os assuntos das mulheres são os mais plurais possíveis, ou seja, dá pra brincar de desconstruir esse ideal antigo e frágil sem se esforçar muito. O preconceito e o machismo na resposta são explícitos.

Se isso já não fosse um problema suficiente para ser pensado, existe ainda uma outra questão: o discurso de ódio que é gerado por esse tipo de posicionamento (anti)ético. Em um dos posts, o restaurante faz questão de afirmar que não se responsabiliza pelos comentários em sua página. Justifica que não possui tempo para ler comentários e moderar, algo que atualmente é esperado com responsabilidade social de qualquer empresa que decide habitar o espaço online. Não se responsabilizar pelo conteúdo gerado em usa página vai na contramão do que temos acompanhado nas redes sociais, de empresas preocupadas com a inclusão. Assim, assistimos a um show de horror e ódio:

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Esses comentários, todos masculinos, reforçam as suspeitas que não calaram: o machismo existe, e forte! Por que o fato de algumas mulheres questionarem as bases que sustentavam o desconto do preço, pautado por gênero, incita tanto ódio nas respostas das pessoas? Por que mulheres precisariam comemorar isso que é chamado de “cavalheirismo”, um “benefício”, que na verdade só evidencia uma condescendência gigantesca com elas? Sendo a sociedade justa na questão de gêneros, mulheres e homens poderiam pagar e ter os mesmos descontos, sem que isso fosse um peso para o outro gênero. Ao não se responsabilizar pelo discurso de ódio, o restaurante comete uma segunda violência com essas mulheres, reafirmando que elas precisam aceitar sempre o que um imperativo social machista diz que elas devem gostar ou não.

E só piora. As mulheres se voltam contra as próprias mulheres:

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Desde quando um pedido de igualdade de direitos, independente dos gêneros, se torna uma questão de falta de pinto? Mulheres que lutam por igualdade de gêneros não podem ser consideradas mulheres? Exigir respeito e igualdade de gênero sempre vai terminar reduzido a piadas ridículas sobre pênis? A vida de uma mulher se resume a encontrar um homem que a queira?

Como podemos perceber, uma única propaganda pode fazer muito estrago. Tudo é política. Tudo carrega um ideal sobre o ser humano e suas relações. As desconstruções não param de acontecer e novos ideais e respostas não param de surgir. Será que podemos conviver com a idéia de que perguntas não são um problema? O problema real aqui parece ser a falta de espaço para o debate e o respeito ao diferente nas discussões. Até quando ainda teremos publicidades como essa? Até quando as pessoas ainda vão achar graça disso tudo e continuar rindo?

Como disse Duvivier em uma entrevista recente, fazer humor é tomar partido. Ou seja, até o humor é político. E sim, podemos escolher nossas piadas e do que rir. Fazer piada de quem está lutando por seus direitos não parece nada divertido.

 

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