Inspiradas no dia internacional da mulher, blogueiras escreveram diversos textos sobre a violência sofrida por mulheres. Belos textos (Toda mulher tem uma história de horror para contar I e II) que contam um pouco pedaços de histórias e narrativas sobre violência. Toda mulher já deve ter passado por isso algum dia. Mas fiquei um pouco incomodada com a separação de gêneros nessa questão. E, apesar de concordar completamente com a discussão que se coloca no universo feminino, venho aqui falar um pouco sobre a violência masculina, para defender que violência não deveria ser combatida com a separação de gêneros.
“A violência é uma organização dos poderes da pessoa a fim de provar seu próprio poder, a fim de estabelecer o valor do eu (…) mas ai unir os diferentes elementos do eu, omite a racionalidade” – R. May
1. O ato violento na infância
Sabemos que as histórias de violência têm suas raízes ainda bem no começo da vida, nos primeiros anos de vida. Já nessa época, centenas de pessoas sofrem algum tipo de violência – desde o tapinha e gritos para educação, até algum tipo de abuso sexual por parte de pais e familiares.
Podemos dizer que as histórias de violência infantil são tão comuns que se tornaram corriqueiras a ponto de acontecer com uma certa aceitação social. Se presenciamos alguma cena que nos indique que a criança está sofrendo algum tipo de abuso, a nossa tendência é achar que estamos “vendo coisas” e que é preciso respeitar a indivudalidade de cada família e suas regras internas. Não é a toa que a grande maioria de casos de abuso sexual infantil, quando descobertos – já tardiamente, sempre vêm acompanhados de histórias em que a vítima contou e pediu ajuda mas não foi atendida. As histórias de violência sempre apresentam três personagens: a vítima, o agressor e a testemunha. Há sempre alguém que se cala.
Violências físicas e psicológicas estão presentes em grande parte das famílias, e parecem já instituidas, tão coladas as histórias familiares que as vezes parece impossivel interferir nessa realidade. Em seu livro sobre violência, Anamaria Neves nos conta um pouco sobre como a violência se apoia em algumas concepções sociais (sobre como deve ser a infância) e como certo grau de violência é socialmente e históricamente aceito. Esse tipo de violência, já tão cedo, foi e ainda é exercida com a cumplicidade de muitas instituições como igrejas, escolas e até mesmo o Estado. Ainda hoje podemos escutar histórias em que a violência familiar não pode ser impedida porque têm a cumplicidade de uma determinada religião e aceitação social.
Muitos pais agressores, quando participam de alguma intervenção psicológica, por vezes parecem vítimas de seu próprio comportamento agressivo e quando paramos para escutar essa história, percebemos que a violência infantil por vezes tem raízes na história familiar, de forma transgeracional.
2. Agressor já foi vítima
A violência infantil aparece nas histórias como uma estranha forma de amar. “Faço isso porque amo, para educar”. Desde pequena, a criança vai aprendendo um pouco mais sobre essa estranha maneira de amar. E quando adultos, tendem a reproduzir essa busca por amor à sua maneira. Violência e amor/desejo aparecem de uma forma tão colada, que parece ser impossível amar ou desejar sem atuar de forma violenta. Por essas e tantas outras razões, a maioria dos agressores de hoje foi a vítima de ontem.
É comum escutarmos de homens agressores, quando questionados sobre o porque da violência, que eles de fato acreditam que as mulheres “estavam pedindo, gostando”. Ficamos enojados com esse tipo de frase mas não paramos para escutar as raízes dessa crença, que em geral veio lá da história desse agressor. Afinal, frente a uma história de horror, é muito mais natural que usemos a dicotomia do bem contra o mal, porque é muito mais complicado tentarmos compreender um pouco tudo que está envolvido nesse horror. Ser agredido é terrível, mas encontrar na agressão a única forma de relacionamento com o outro também pode ser terrível. Se falhamos em olhar para esse agressor quando ele ainda era vítima, não podemos falhar duas vezes e negar seu direito de também ser olhado, cuidado, escutado – talvez pela primeira vez.
3. Violência sexual contra o homem
Sabemos o quanto as mulheres sofreram abusos e violência ao longo da história, e também sabemos que essa história aos poucos está mudando. As vítimas cada vez mais tem tido apoio suficiente para contar suas histórias e têm a oportunidade de exorcizar seus medos e seus horrores. Já algum tempo essas histórias são bem vindas, e a luta para mostrar que a culpa da violência não é da vítima deu essa oportunidade para muitas pessoas.
Mas quando falamos apenas da violência sofrida por mulheres, deixamos de lado as muitas histórias de violência contra o homem. Com histórias de horror, esses homens também têm muita dificuldade de contar e procurar justiça, já que sabemos o quanto a postura social machista impede certos comportamentos masculinos.
Quantas vezes ainda ouvimos que “homens devem sofrer calados” e que uma história de vítima “é coisa de viado”, ou ainda que o homem é forte, jamais teria como sofrer abusos de mulheres – ou de outros homens. Mas isso acontece muito mais do que imaginamos. E ao contrário das mulheres, os estudos sobre violência com vítimas masculinas é ínfimo, uma pesquisa superficial no google pode demonstrar isso. Presos em seus papéis sociais, homens também sofrem violência calados e têm muita dificuldade em procura ajuda.
4. Violência e discussão de Gêneros
Entendo e acho muito importante essa onda de proteção as vítimas femininas de violência. Mas acredito que esse contraponto é sempre necessário em qualquer discussão, já que a violência não é exclusividade de um gênero. Sabemos que homens, mulheres, transexuais e homossexuais sofrem todo tipo de violência o tempo todo. Devemos incentivar as vítimas a denunciar e contar suas histórias, sempre. E não podemos congelar a imagem do agressor como alguém do sexo masculino. Como vimos, pessoas que tem uma imagem social de delicadeza e sensibilidade (mães, por exemplo) podem facilmente se encaixar no perfil de agressores, assim como os mais terríveis agressores já podem ter sido vítimas de terríveis violências.
“Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro.Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda razão. Não é que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.” – Fernando Pessoa