Seminário Clínico 2025

Seminário Clínico 2025 – Escrita Corpo Falante:

Ler, Escrever, Enodar

Com Aline Accioly

Psicanalista

Doutora em Estudos Psicanalíticos (UFMG)

Carta-convite ao tropeço

No último evento do Outrarte, levei um trabalho sobre um caso clínico publicado posteriormente como livro. Enquanto lia um trecho do material para a pequena audiência do evento, tropecei em uma equívoca troca de letras. No texto, havia a expressão pá de cal, nomeação com a qual a analisante testemunhou por escrito os efeitos de uma análise e seu fim. No entanto, o que saltou em outra língua, na leitura do fragmento, escrevia uma transformação tropeçante: pé de cal. 

Reparei na minúscula troca de letras vocalizada, á por é, e segui a leitura, pois algo não compartilhável produziu imediatamente uma incógnita na linha de articulações escritas no texto. O interessante é que nenhum sentido se apresentou diante do acontecimento. Marquei esse ponto de parada produzido pela descontinuidade entre letra e voz, articuladas, com o acréscimo de uma nota sobre meu tropeço ao lado do texto e mantive, com essa estratégia, a inclusão do enigma recém produzido fazendo limite à habitual ligeireza com a qual fomos ensinadas a operar diante de um ato de linguagem – como decifradoras do inconsciente que se apressam em atribuir uma explicação, um sentido, uma tradução rápida demais através de vocabulários e saberes universalizantes, tamponando a abertura produzida por essa outra leitura  – que roubou a cena e cavou uma hiância na partilha com a comunidade letrada de analistas. 

Um querido colega de escrita que estava presente no local esperou o dia seguinte para tecer seu comentário sobre o que escutou, destacando a troca entre e . Sorrimos, sem ousar explicar aquela passagem clandestina de uma letra no lugar de outra supostamente referida como original. Ousamos colher o enigma do tropeço e deixá-lo traçado como uma cifra a ser retomada, tal qual certa estratégia de alguns cozinheiros que, ao manejar as receitas de bolo, sabem quais ingredientes precisam ser manipulados primeiro, mas contam com um tempo de ação em reserva para que a mágica de sua química aconteça apenas no final. 

Enquanto o tropeço segue repousando em seu tempo de decantação, retomo alguns movimentos anteriores que ofereceram condições para que o equívoco sonoro se materializasse. Meses antes, estive às voltas com uma inquietação acerca do fazer do analista após a escrita de um caso. Me encontrava justamente no não-espaço entre o fim de um desejo de escrita e seu objeto fabricado, e a inquietude criativa que antecede a configuração de um novo desejo. Havia encontrado inspiração em alguns comentários de artistas que discutem a mudança de paradigma em seus estilos após a constatação que um objeto artístico foi finalizado. Depois que o objeto ganha forma e testemunha o trabalho de transformação criadora do desejo, a familiaridade que condicionou sua existência passa a ser estrangeira. A obra passa a pertencer aos que a leem, em descontinuidade com o fazer do artista. O fragmento caído do trabalho constata a mudança no estatuto do objeto, em seu valor artesanal de constituição, flagrando a condição de não-identidade essencial do artista e o pedaço caído de seu trabalho. 

Essas reflexões me ajudaram a cernir uma questão sobre os efeitos da escrita de um caso clínico para o analista que escreve, pois se o final de uma análise é figurada pela sempre surpreendente decantação do fragmento do sujeito passante em sua ardente e recém-descoberta agência nomeante e, ainda, através da produção de um saber singular sobre seu modo de existir e criar seus objetos, o que faz o analista com a experiência de resto a qual foi ativamente participante com seus atos, em pura perda de si para que a transferência fosse estruturante para a conclusão do caso? Como, nessa passagem ao próximo trabalho de análise e escrita, manter o espaço aberto para ser a-fetado, aos tropeços, por uma outra língua, mantendo a estrangeiridade necessária para que a destituição subjetiva opere incessantemente, mais ainda?

Antes de enfrentar as consequências de tais inquietudes, chamo atenção para o uso de termos lacanianos em meu léxico, como pura perda, sujeito passante, saber singular, experiência de resto, destituição subjetiva, dentre outros. A língua lacaniana vem sendo repetida em todos os lugares, por tantas pessoas que enfrenta o perigo de ter tornado-se uma suposição universal sem consequências. A pulverização de uma língua abre espaço para que ela seja transformada pelos sujeitos que passam a habitá-la e esse foi um dos desejos de Lacan com seu ensino. No entanto, quando esta mesma língua é usada como puro saber e cristalização de verdades, torna-se um discurso que referenda o pior das instâncias de poder e dominação, como as orações religiosas que são entoadas por hábito, sem as consequências do peso das palavras que elas carregam e incidem naqueles que as proferem. 

E não é como se eu estivesse muito interessada em buscar os sentidos supostamente corretos para essas noções, porque teoria só levaria a mais produção de teoria e menos contato com o abismo da/na prática que elas tentam cernir. Também não me interesso por um novo lacanismo mais adequado e adaptado a nossa época, pois uma língua é, sobretudo, “nada além da integral de equívocos que sua história deixou persistirem nela” (Lacan, 1972/2001, p.492). Meu interesse situa-se nas formas de transmissão da experiência de uma analista que opera com seu corpo como estilhaço, desfazendo-se de sua pessoa a cada sessão, para que o sujeito da cena advenha e transforme a presença do analista no semblante de sua causa, até que prescinda deste e passe a-diante.

Não é simples esse ofício de analista. Imaginem poder ser a favor de uma faculdade que ensine a arte do estilhaço de subjetividades como condição de cura do sujeito! Existe um dito popular que alerta para o perigo, em certas situações, quando, ao vestir a roupa de um personagem por muito tempo, correr-se o risco de confundir-se com sua própria ficção. Caso não seja tomada certa distância da performance encenada, o sujeito pode acreditar que é o engano proposto e esquecer das condições para a cena. Em percursos de análises esse fenômeno acontece muito mais do que gostamos de contar. 

Durante meu tempo no campo psicanalítico, escutei diversas situações, contadas por analisantes e supervisonantes, de análises que acabaram mal e seus catálogos de constrangimentos. Analistas tornando-se a voz superegóica do analisando, analisantes dependentes de suas análises intermináveis, uma lista de histórias que causaria inveja a roteiristas de filmes de terror. Mas, nem por isso, estou interessada nessas situações para figurar mais uma lista fantasmática de erros possíveis para assombrar analistas em formação. Meu texto começou com um tropeço e com um desejo de transformação do significado geralmente atribuído ao erro em uma errância, esvaziando o uso da moral, sempre marcada por um ideal, que produz toda sorte de inibições, sintomas e angústias no manejo dos analistas. Há, no tropeço, o constrangimento de um analista diante do que erra frente a um ideal de análise, mas há também um ato de errância à espera de ser lido, como sinal de um estilo que escreve sua forma de destituir-se para que a transferência aconteça. 

Por isso, a cada ano que passa, observo o excesso de cursos de formação de analistas na feira de psicanálise da internet e me preocupo com esse bando de interessados em psicanálise. Seus mais variados tropeços e constrangimentos, quando não acolhidos, podem virar a causa de suas desistências precoces do desejo de clinicar ou, no pior dos casos, torná-los sabidos em excesso, enrijecidos e cínicos em suas posições zeladoras de poder. De toda forma, essas disputas territoriais na formação nunca me interessaram como campo de trabalho, porque gosto do sabor de acompanhar, acolher, plantar sementes com os interessados em investigar seus próprios desejos com esse ofício, para além do fascínio com o suposto lugar de enriquecimento fácil e atribuição de poderes. Por que, afinal, alguém se interessa por ocupar esse lugar de analista para um sujeito? E por que esse mesmo alguém renova tal interesse ano após ano, caso após caso, experimentando o dissabor que brota da maioria das sessões de análises? 

É, me interesso mesmo pelos tropeços. São eles, afinal, que me guiam passo a passo ao próximo caso, ao próximo sujeito, à próxima escrita. Por falar em tropeço, retornemos à troca de uma letrinha que alterou radicalmente meu encontro com aquele texto que eu escrevia, cujo tema era uma inquietação ainda em esboço sobre o desejo do analista, sobre o que ainda resta a ser lido, sobre a transferência depois que um caso clínico se escreve. Sabemos, a essa altura, tanto pelo texto da tese quanto pelo excerto do caso no livro, quais haviam sido os movimentos borromeanos de constituição de uma saída para a analisante, naquele caso. Mas seria possível ler como a analista contou, naquele caso, como objeto em queda constante? Seria possível esmiuçar os tropeços que possibilitaram à analisante sua saída e à analista sua experiência bem sucedida de pura perda de si como uma forma de amor absolutamente nova e irreplicável, aos pedaços?

A palavra “tropeço” é uma derivação regressiva da palavra “tropeçar” e vem do português antigo “entrepreçar”, que por sua vez vem do latim “interpediare”, que significa “impedir, embaraçar”. “Interpediare” é literalmente “trocar os pés”, sendo composto por “inter”, que significa “entre”, e “pés”, que significa “pé”. A palavra “tropeço” pode também significar cepo, ou seja, a parte de uma árvore que foi cortada. É com essa palavra errante que quero convidar você para colocar seus pés no território do nosso Seminário de trabalho em 2025.

Há uma forma de psicanalisar que se ocupa prioritariamente da decifração do inconsciente, considerando portanto, por princípio, que isso é cifrado como uma linguagem cuja língua equaciona o desconhecimento radical de um sujeito da causa de sua existência. Essas cifras se apresentam das formas mais estranhas, como em sonhos, sintomas, acontecimentos de corpo, e ficam à espera de tradução. Jacques Lacan, como um bom freudiano, partiu desse momento crucial para a epistemologia clínica da psicanálise e acrescentou um passo, ao chamar atenção não apenas para o processo de criação de novos sentidos reveladores como formas de cura pela verdade das significações, pois percebia que longas análises produziam saberes infinitos, revelações incessantes, mas não produziam, necessariamente, saídas para o sujeito fazer outro caminho de seu enigma contornado pelo rochedo de castração. 

Lacan focaliza a operação de cifragem, associando ao enigma dessas operações as ideias de leitura, tradução e escrita. Assim, o psicanalista constroi um argumento para o final das análises, concebendo-as como momentos em que o ser que fala e troca letras para inventar universos inteiros pode finalmente concluir a transferência ao apreender-se como leitor de sua forma única de escrever saberes e cifras de sua relação com o Outro, incorporado como corpo falante. Esse sujeito passa a-diante com uma chave de leitura, com o segredo de sua senha de passagem para se reescrever sempre que desejar de outros modos e em outros lugares. Esse foi o jeito lacaniano de transformar a saga edípica e seu terror neurótico de nunca querer saber d’isso, sua causa, em um caminho de escrituração de si através das linhas de errância desses sujeitos, seus tropeços. 

Portanto, tropeçar não nos leva a pensar nos sentidos que um tropeço pode fundar, mas na literalidade do erro que esconde e apresenta, tão escancaradamente, um modo único de criar realidades. Vamos, então, pelo caminho do tropeço como signo da troca entre os pés, como um corte que uma simples letra trocada produz nos sentidos que uma palavra carrega e pode orientar novas aberturas para outras vias de desejo. 

Como tropeçam os analistas hoje? Como suportam o peso das equivocidades que tomam corpo nos acontecimentos da clínica e como manejam a resistência à novidade que elas carregam, tamponada de diagnósticos e sentidos para suas experiências clínicas? Como você tem acolhido, regado e cultivado os tropeços bem aventurados que brotam da boca de seus analisantes?

Espero a abertura na agenda de vocês, sábado dia 15/02/25 às 9h. Serão 9 encontros, um sábado por mês, de fevereiro a novembro, das 9h às 12h. O link de inscrições está na bio do instagram. Espero a partilha com vocês para manejar o risco de-ser que transformou em na vocalização trocada de uma letra e, também, para colocar em jogo os traços de estilo que atravessam suas clínicas e não esperam por uma interpretação metafórica, mas leitura literal, lituraterra.  

Datas: 15/02, 15/03, 12/04, 24/05, 28/06, 16/08, 20/09, 18/10, 22/11/2025. 

Horário: 9h-12h Ao vivo e Online.

Monstruosa língua do-ente

Trabalho apresentado na V Reunião Aberta da Hæresis Psicanálise (2023)

Resumo

O ensaio intitulado “Sobre estar doente”, de Virginia Woolf, versa sobre um corpo-texto que  testemunha sua versão do-ente. O escrito nos convida a desertar das noções de saúde que moldam nossas leituras de corpos, seus estados e sintomas. O texto Woolfiano exibe um descompasso entre a experiência de um corpo falante e dos relatos clínicos dos corpos falados através do pensamento científico biopsicossocial. O referente que nos interessa, na leitura desses corpos, situa-se na inesperada equivocidade que insiste como ruídos inincurraláveis animando desconcertos de lalíngua. Um corpo do-ente é, sobretudo, um corpo falante capaz de habitar a linguagem ao gritar, silenciar, falar, cantar, dançar e escrever sem se deixar dominar integralmente pelas vias de significação universal. Estar do-ente é perder a falsa familiaridade com o mundo e recobrar o contato com um estranhamento incômodo e íntimo. Virginia Woolf não estava preocupada em circunscrever um estatuto epistemológico para o adoecimento. Seu compromisso com as letras e suas funções referenciais animam outra causalidade para a existência do falasser que escreve. Por isso, a escritora configura a doença como um estado de transformação que descortina assombrosas terras desconhecidas. Assim, partimos da letra de Woolf para abrir caminhos que nos permitam reconhecer, na escuta analítica, existências dos-entes e seus monstruosos e variados usos da língua. Tal orientação baliza a configuração de uma hipótese (em construção) sobre o estatuto do corpo a partir da psicanálise lacaniana nos anos setenta. A noção de corpo falante, concebida por Shoshana Felman e sustentada topologicamente por Jacques Lacan, realiza a escrita das intermináveis deformações de um corpo. Os movimentos de escrita, nodais e modais, promovem um atravessamento não apenas das fantasias imaginárias que articulam esse corpo ao sistema social, mas enfrentam, ainda, uma travessia das estruturas simbólicas de sexo-gênero e identidades que permanecem ensurdecendo analistas e analisandos no reconhecimento das monstruosas e incabíveis invenções. Os movimentos de decisão do sujeito, Preciado nomeia, à sua maneira, como dissidência. Inspirada por esse afrontamento epistêmico nos modos de leitura e escrita do corpo, na condição de monstruoso, interrogo: como a incidência do dizer, que ressoa como um desconcerto de lalíngua, pode ser traduzido a partir dos emaranhados borromeanos em uma análise?

Para citar – dados bibliográficos

ACCIOLY, A. Monstruosa língua do-ente. Em Anais da V Reunião Aberta da Haeresis Associação de Psicanálise, Uberlândia: 2023. Disponível em http://www.alinesieiro.com.br/2023/10/27/monstruosa-lingua-do-ente/

Psicopatologia Lacaniana: …a partir de quando se está louco?

Lançamento de Livro

O livro está disponível para compra no site da Editora Scriptum
Saiba mais em Hæresis

O segundo lançamento do livro acontecerá na V Reunião da Hæresis, dia 01/12/23 as 14h30. Espero vocês lá! Haverá exposição, venda e possibilidade de autógrafo das autoras. E, ainda, haverá exposição do Diário Andarilho de Eliene Boaventura, que foi trabalhado na escrita do livro.

A clínica é um método de investigação (e não um lugar fechado por quatro paredes onde você se intitula profissional e acha que faz o que quer)

Estava saindo do consultório hoje e encontrei dois psicólogos no elevador do prédio. Eles estavam comentando sobre um paciente que um deles havia dispensado porque deixava a sala “com um odor impraticável, levava dias para o cheiro dele sair da sala”. Segundo eles, o paciente era “disruptivo, desconexo, dissociado”. O elevador chegou no andar da portaria e os dois psicólogos seguiram seu discurso sobre as questões do paciente dispensado.

Semana passada estava em toda mídia a história de uma médica que contou sobre o estado de saúde de Marisa Letícia em um grupo de whatsapp e ainda a história do médico que descrevia a maneira possível de deixar Marisa Letícia morrer mais facilmente.

Ontem, escutei dois amigos comentando sobre psicólogos que saem da graduação sem nenhum conhecimento básico sobre a teoria, quanto mais sobre clínica e ética, e vão permanecendo nas instituições públicas, “trabalhando” a favor das falências da saúde pública. Segundo eles, são profissionais que teoricamente entendem um ato que deve ser realizado, mas na hora que a situação clínica acontece, não sabem reconhecer o momento na experiência vivida, discutida anteriormente na teoria.

Com o conceito de clínica e ética temos o mesmo problema. Os profissionais de saúde estudam ética e cínica durante anos na graduação, pós graduação e nos estágios. Porém existe um gap entre aquilo que eles estudam e respondem na prova com a situação de vida em que a clínica e a ética acontecem, no ato da relação entre dois humanos. Escutei, ainda semana passada, um professor universitário preocupadíssimo com a questão da ética nos cursos de saúde; pensava seriamente em aumentar as discussões sobre ética e dificultar o processo de validação para a prática clínica. “Não é preciso apenas a teoria e as condições financeiras para lidar com humanos, é preciso mais do que isso”.

Ano passado, dando aula em um minicurso sobre a psicanálise, uma aluna ficou extremamente perturbada quando sacou, durante o minicurso, que o ato do analista na clínica não oferece segurança, garantias de bem estar financeiro e social. “Mas se eu preciso combinar o valor com cada paciente e a questão do valor faz parte do tratamento, como vou pagar minhas contas? “. A preocupação é real, mas estava calcada no desejo econômico e social de estar situado no campo da saúde. Com a medicina, sabemos que esse buraco é bem fundo: durante anos a fio se fez a escolha pela profissão para ter dinheiro e status social. O mesmo acontece com a psicanálise. “Das duas uma: se não dá dinheiro, dá poder”, disse uma estudante de psicanálise.

A psicanálise não é um ofício para todos. Não basta ler alguns textos de Freud ou Lacan e se intitular psicanalista no cartão de visita e na plaquinha de divulgação do site na internet. Da mesma maneira, a clínica não é para todos. A clínica não é um espaço físico localizado na rua, no caps ou no hospital. Os pacientes, seres humanos, têm esse “defeito” de ter um corpo, carne, ossos, odores e estranhezas. Eles falam, sentem, e constantemente apresentam questões que nos instigam, que nos apresentam o que não entendemos sobre diversos aspectos da vida e do mundo. Eles são desobedientes, tem suas próprias teorias sobre eles mesmos e são espertos o suficiente para ficar revoltados quando sacam que não estão sendo bem atendidos. Que trabalho esse negócio de clínica, não é mesmo?

A clínica é um método de investigação e tratamento sobre as causas enigmáticas do adoecimento no homem. A psicanálise é um método de investigação e tratamento do sofrimento humano causado por seu inconsciente. Ética é o princípio responsável por criamos leis que nos permitam manter a condição civilizatória e dizer não a barbárie presente na humanidade. A ética em psicanálise nos ajuda a pensar sobre a articulação entre a ética do desejo particular do sujeito e a dimensão do laço social.

Esse ano de abertura da Hæresis, vamos estudar o seminário de Lacan sobre a ética. É preciso investir um tempo com essas preocupações fundamentais de qualquer atuação clínica. Mais, ainda: é preciso investir na descoberta particular do desejo de um profissional em atuar na clínica e na psicanálise. Ou vocês vão continuar acreditando que a falência da civilização está apenas nos senados e não nos seus atos cotidianos de enganos (como os psicólogos que se intitulam clínicos, mas dispensam um paciente porque ele é a presença viva da angustia de um não saber – e não tem pudor algum de falar sobre isso no elevador de um prédio comercial)?

As primeiras psicanalistas em 1910

Nas reuniões das quartas-feiras, levou um certo tempo até que algumas mulheres fossem convidadas a participar. As reuniões tiveram início em 1902, mas até 1910 nenhuma mulher havia participado, não por falta de pretendentes. As reuniões chegaram a contar com 24 membros homens, 18 deles judeus, 18 deles médicos. Isaack Sadger e Fritz Wittels eram contrários a entrada de mulheres na sociedade, porém todos os outros membros tinham posições favoráveis a essa abertura. Em 1907, as reuniões das quartas-feiras se transformaram na WPV, primeira instituição psicanalítica do mundo. Mas foi apenas em 1910 que a primeira mulher foi aceita em uma instituição de psicanálise, mesmo ano em que a WPV se transformou na IPA. As mulheres psicanalistas foram todas primeiramente conhecidas por serem as famosas histéricas, pacientes dos primeiros analistas.

A entrada das mulheres na psicanálise se deu primeiro pela condição de pacientes e segundo pela condição de analistas da infância. Na biografia de quase todas elas, ou nas pequenas notas que restaram sobre algumas, sempre encontramos como descrição a especificidade na análise com crianças. Curioso pensar que esse era o lugar comum de entrada das primeiras mulheres psicanalistas. Naquele tempo, pensar na infância ainda era função da mulher, fosse ela dona de casa ou psicanalista.

Os anos se passaram, mas existe um ranço dessa história que nos acompanha ainda hoje. É recorrente escutar pelos corredores obscuros da formação de analistas que trabalho com crianças é pouco valorizado, algo simples, muitas vezes visto até mesmo como desnecessário. “Ah, então você atende crianças! Então quem gosta de brincar pode atender crianças”. Ou ainda: “Como é possível a existência de psicanálise com bebês? “. Ao longo de anos, grandes mulheres analistas foram responsáveis pela construção de várias clínicas com crianças, em diversas concepções teóricas dentro das tantas psicanálises existentes. Um estudo quantitativo recente afirma que hoje a maioria das analistas do mundo são mulheres. Independente dos números, o fato é que o lugar das primeiras analistas freudianas ainda fica muito obscurecido por figuras famosas e polêmicas como Melanie Klein e Anna Freud.

A maioria dos chamados primeiros psicanalistas, que somaram 24 em certo tempo das reuniões das quartas-feiras, nunca passaram pelo processo de análise. Assim, é interessante notar que as mulheres inauguram também, na psicanálise, um axioma muito repetido na formação dos analistas ainda hoje, de que um analista sai de sua própria análise pessoal. Como gosta de afirmar Roudinesco, a importância do laço entre os pacientes e seus analistas para a evolução da teoria psicanalítica começa ai, na clínica com essas mulheres e na passagem de muitas delas de pacientes para analistas. Essas mulheres não ensinaram para psicanálise apenas sobre a histeria ou tantos outros quadros diversos; ensinaram também algo sobre a transmissão, sobre a escolha pela psicanálise como uma tentativa de saída para a invenção.

 

Roudinesco, E. Em defesa da Psicanálise.

Silva & Santo. A história das primeiras mulheres psicanalistas do início do século XX.

 

As mulheres médicas em 1907

Na reunião de 15 de maio de 1907, os primeiros psicanalistas discutiram sobre o artigo de Wittels intitulado “As mulheres médicas”. Eu falei sobre Wittels no meu último texto sobre as atas, estão lembrados? Wittels era um jovem curioso, na falta de outro adjetivo mais preciso.

Fritz Wittels entrou para as reuniões de Psicanálise das quartas-feiras a partir de um interesse pela psicanálise freudiana. Participou durante um ano e começou a atender em seu consultório particular. Não muito tempo depois, por não ter sucedido nessa empreitada, em 1910, foi trabalhar em um sanatório particular e trabalhou durante 15 anos como médico em uma ala psiquiátrica. Nessa mesma época, escrevia muitos romances e os publicava. Em 1919 ele enfrentou uma análise didática e em seguida publicou uma espécie de biografia de Freud, que não ficou satisfeito e pediu correções. Em 1927 foi admitido na IPA. Em 1932 se mudou para os Estados Unidos e passou a fazer parte da Sociedade Americana de Psicanálise. Republicou a biografia corrigida de Freud e passou também a escrever vários textos sobre a técnica psicanalítica. Freud não gostou da republicação da biografia e por vezes acreditava em um certo oportunismo do seu colega de psicanálise.

Enfim, esse jovem Wittels, entre 1907 e 1908, apresentava textos nas reuniões de quarta-feira, textos no mínimo duvidosos. Em geral sobre as mulheres e o lugar das mulheres na sociedade. Ele levava a sério “o chamado da menstruação”, e quase todos os seus textos da época eram em torno dessa hipótese e as consequências dessas “traições” por parte das mulheres que não aceitavam seu chamado. Na reunião de 15 de maio, Wittels falava sobre as mulheres médicas. Na época, as primeiras turmas no curso de medicina haviam aceitado mulheres como estudantes e Wittels defendia, no artigo que apresentou ao grupo de analistas, que profissão de mulheres era a pedagogia. Para ele, a mulher que escolhia pela medicina era histérica e fazia isso por sua capacidade de ser imoral sem culpa, desenvolvendo um bom desempenho como estudante de medicina. Segundo seu texto, a ideia da existência de mulheres médicas era um absurdo, pois uma mulher jamais entenderia os mistérios de um homem e jamais teria condições de assumir cargos na saúde pública, já que sempre abusaria de sua posição em benefício próprio. Wittels concluiu seu texto afirmando que o desejo pelo estudo da medicina era apenas um sintoma de histeria, uma supressão do verdadeiro desejo de uma mulher.

Federn, o primeiro a comentar sobre o texto, diz que Wittels cometo o erro de acreditar que apenas as mulheres seriam capazes de perverter a função da medicina. Ele lembra que muitos homens já usavam suas posições como médico para abusar de pacientes mulheres e que a perversão não é uma característica específica do feminino.

Graf diz a Wittels que ele apenas está com raiva das mulheres que preferem estudar a transar com ele. Hitschmann acredita que o desejo das mulheres de estudar não é histeria e sim uma cura para ela. No entanto, questiona o motivo pelo qual todas as mulheres médicas parecem ser feias e ter seios pequenos. Ele afirma que o princípio feminino é ter filhos, mas que isso é algo relacionado a espécie e que não somo reféns do nosso biológico. De maneira chistosa, finaliza dizendo a Wittels que ele apenas quer cultivar um desejo de que todas as mulheres se mantem putas, prontas para o coito e que ele parece um macho no cio.

Freud expressa um reconhecimento pelo esforço da escrita de Wittels, mas não deixa de dizer que ele foi extremamente indelicado com as mulheres em seu texto. Freud afirma que a civilização impõe fardos pesados as mulheres e que por isso elas ficaram atrasada em termos de evolução na relação com os homens. Por isso, Freud acredita que ele questiona o lugar das mulheres na medicina apenas porque se trata de algo novo socialmente. Freud prossegue afirmando que Wittels confunde sexualidade sublimada com sexualidade bruta e que por sem jovem, logo vai perceber que as mulheres médicas não têm aversão a sexualidade, mas quando saca isso, se torna misógino, em defesa. Ele despreza as mulheres porque pretende desmascarar o objeto que um dia venerou.

Adler acha que Wittels é como um menino que acabou de levantar a saia da amiguinha de escola e descobrir que ela tem genitais femininos e que ele descobriu também que todo médico mexe com o sexual, seja homem ou mulher.

Wittels responde que está extremamente afetado pela fala dos amigos e por isso não se vê em condições de responder aos comentários. Mas retoma que é “incapaz de ter em alta conta a mulher que não escuta o chamado da menstruação”.

Vale a pena acrescentar, a título de localização histórica, que Wittels era sobrinho de Isidor Isaak Sadger, um psicanalista que também participava das reuniões das quartas-feiras. Sadger era obcecado por temas como homossexualidade e perversão e foi considerado um fanático da psicanálise. Freud chegou a chamar Sadger de “fanático hereditariamente tarado por ortodoxia”, que só acreditava na psicanálise por um desvio, poderia mesmo ser fanático por qualquer religião. Segundo Roudinesco, Sadger aplicava a teoria da sexualidade ao pé da letra, sendo conhecido por sua misoginia extrema e por seu papel trágico na história da paciente Hermine, de quem era analista. (Hermine, alías, é uma outra grande história que outro dia eu conto com calma, ela foi uma das primeiras analistas de crianças e também uma das primeiras mulheres a entrar nas reuniões das quartas-feiras, mas tem uma história trágica dentro da psicanálise).

Não vou comentar essa reunião, vou deixar para cada um de vocês tirarem suas próprias conclusões.

 

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