Procuro sempre ter um olhar crítico em relação às “coisas boas” que nos acontecem, principalmente quando elas têm um fundo político ou corporativo. Não seria diferente para os planos de saúde.
Minha briga com planos de saúde já não é de hoje, e já fiz um post aqui em relação a isso. Nunca acreditei que a idéia por trás dos planos de saúde fosse ruim, e sim que é mal executada. E quando se fala em dinheiro, num sistema capitalista, não podemos esperar coisas muito diferentes. Quando os dentistas entraram para o esquema, percebi que eles percorreram (e ainda percorrem) o mesmo caminho. E por fim é a vez dos psicólogos, fonoaudiólogos entre outros “novos” profissionais incluídos nos planos de saúde. Mas vamos por partes.
Meu problema com os planos de saúde está no modo como as coisas ocorrem. Uma pessoa paga um valor mensal, e com isso teria direito a médicos, exames, cirurgias, que se ela fosse pagar, talvez não pudesse arcar com tais valores. Então, pagando um valor mensal, quando houver necessidade de um exame caro, ou mesmo de uma cirurgia, ela não precisaria conseguir o montante necessário em poucos dias. Por outro lado, o médico não ter que tratar de dinheiro com o paciente, poder atendê-lo tranquilamente e no final do mês ter seu “salário” garantido, é considerado um benefício.
As pessoas gostam de fazer planos de saúde pois na saude pública, quando precisam de um médico ou tratamento, são obrigadas a entrar em filas de espera que podem ser de 15 dias a 3 meses. Em uma sala de emergência, a espera para um atendimento pode durar até cinco horas. Por isso ter plano de saúde particular, nos casos de emergência, agiliza e garante o atendimento. Mas quem tem plano de saúde sabe que não é isso que acontece.
O que acontece é que muitas pessoas pagam o plano de saúde, ou seja, os planos conseguem o montante necessário para manter a rede (médicos, exames e hospitais conveniados). Mas, segundo os executivos, esse valor não é suficiente, já que os serviços médicos são muito caros. Ainda sim, pagam para os médicos valores que chegam a dar vergonha de dizer. Se um médico hoje cobra de 100 a 250 reais um consulta (com direito a retorno), muitos planos não pagam nem metade desse valor, e em geral com um, dois meses de atraso. Isso é o início de uma cadeia desagradável, pois já que recebem pouco, os médicos não podem dedicar muito tempo aos pacientes de planos de saúde. Dessa forma, marcam 4, até 5 pacientes para a mesma hora, e em suas agendas, só direcionam alguns dias e horários para pacientes conveniados. Basta ligar e dizer que é particular, e eles tem horário para o mesmo dia. Se for de plano, só mês que vem, as vezes só dali a 2 meses.
Ou seja, ficou ruim pra todo mundo: o médico ganha menos do que acha justo, não fica contente e marca pacientes pra mesma hora, atende a todos eles com rapidez – não conseguindo dar a atenção devida a cada caso; vive com a sala de espera cheia de pacientes bravos porque não são nunca atendidos no horário. Pacientes ficam bravos porque, mesmo pagando seus planos, não conseguem ser atendidos com emergência, e as vezes a espera por uma consulta fica muito parecida com a espera da saúde pública. Quando finalmente conseguem, são sempre atendidos com atraso, e saem de lá com uma lista de exames e pedidos de autorização. Com esses pedidos em mãos, mais burocracia para conseguir as tais autorizações, e quando vão marcar o exame também enfrentam uma demora, que pode perdurar por até um mês. Quando eles finalmente conseguem seus exames e vão marcar retorno com o médico, mais uma vez têm que esperar a agenda, enfrentar novos atrasos, e assim vai o ciclo.
Eu podia continuar aqui falando das exigências dos planos de saúde, da história das doenças pré-existentes, da dificuldade de reclamar, pedir direitos, e das diversas negativas que acontecem quando você precisa de um plano. Mas vou seguir em frente, sem detalhar muito. A idéia principal com essa introdução foi mostrar que o plano de saúde surgiu para prover saúde a todos, e o que temos hoje é uma bagunça exatamente igual a saúde pública. Mas o medo é maior, e mesmo com tantos problemas, continuamos a pagar planos de saúde.
Tempos depois, o mesmo aconteceu com os dentistas (não pretendo me aprofundar no assunto também, só fazer um comentário para seguir a idéia principal do texto). Muitas pessoas deixavam de cuidar de seus dentes, pois era sempre um tratamento caro (e dolorido). É possível que uma pessoa tenha que desembolsar mil, dois mil reais em um tratamento dentário, dependendo da gravidade. Então quando os planos odontológicos surgiram, todos ficamos contentes. Afinal, pagar 20, 50 reais mensalmente e ter direito aos tratamentos tão caros parecia um bom negócio. Mas nada é simples assim: antes você marcava 3, 4 idas ao dentista e conseguia fazer todo seu tratamento. Com os planos, cada ida resultava em apenas um dente feito, ou 1/4 do tratamento realizado. Ou seja, sessões de 15, 20 minutos, e muitas idas ao dentista. E aí fomos descobrindo que os tratamentos realmente caros não estavam incluídos naquele valor mensal. Então era sempre assim: você ia ao dentista e, quando chegava lá, descobria que o que você precisava mesmo fazer teria que pagar do bolso. Oras, mas isso não pode. Pois é, sabemos como as regras funcionam no Brasil.
Então agora vamos falar da inclusão da Psicoterapia nos planos de saúde. Sempre se achou uma injustiça não ter psicólogo, já que saúde mental também é importante para uma pessoa. Com isso, os psicólogos foram incluídos nos planos, mas com algumas condições: a primeira é que o paciente precisa de encaminhamento, ou seja, ele deve passar em um médico, falar de sua condição, e este médico deve decidir se encaminha ou não o paciente para o psicólogo. Depois, se o paciente consegue o encaminhamento, tem direito a 12 sessões no ano. As pessoas ficaram contentes e não pararam pra pensar no que tudo isso significa. Na sequência, outra boa notícia: de 12, passam a ser 40 sessões. É, vendo assim, parece que é bom mesmo. Mas agora, pelo que entendi, só um psiquiatra pode fazer a indicação ao psicólogo, e as 40 sessões vão depender do diagnóstico dado para cada caso. Então vamos falar um pouco de tudo isso?
Pra começar, temos o problema do pagamento: os planos repassam, em geral, o valor de 18 a 30 reais por uma consulta com o psicólogo (valor este que também não costuma ser nem metade do que se cobra em uma consulta particular). E estes valores só são recebidos em 30 dias, com atrasos que chegam até dois meses. Outro problema está no tal encaminhamento: partindo do princípio que o paciente tem que passar primeiro em um médico psiquiatra, os planos de saúde praticam a lei do ato médico, mesmo que as brigas e discussões tenham mostrado que isso é um retrocesso em termos de multidisciplinariedade e respeito profissional. Ou seja, é um médico o responsável por decidir se o paciente deve ou não se consultar com o psicólogo. Eu particularmente acho isso um grande desrespeito com a figura do psicólogo. Sem falar no ponto de vista do paciente: sabemos bem o quanto demora para uma pessoa se decidir e tomar coragem para procurar um psicólogo, com tantos estereótipos sociais que temos. Quando ela finalmente toma coragem, e descobre que primeiro terá que passar em um psiquiatra (sabemos bem outro estereótipo que temos aí), pegar encaminhamento, passar no plano e pegar a autorização, pra daí ir ao psicologo, posso dizer que de 10 pessoas, duas, no máximo, continuarão firmes em suas decisões (as pessoas ligam no consultório querendo atendimento, quando descobrem que tem que fazer tudo isso, não ligam mais, é fato).
Outro problema está em tornar a psicoterapia uma clínica igual a médica, pois parte-se do princípio que temos que diagnosticar para assim decidir quem merece 40 sessões e quem não merece. Nós, que trabalhamos na clínica, sabemos que as coisas não são tão simples assim. Há pacientes cujo “diagnóstico” é complicado e longo, inclusive pacientes difíceis de diagnosticar nesse padrão CID e DSM de ser. Fora isso, as sessões podem ter que acontecer 2 ou até 3 vezes por semana, o que rapidamente esgotaria essa carga de 40 horas, seja um paciente “grave” ou não. E aí, o que acontece depois disso? Ou o paciente interrompe o tratamento, ou ele arcará com o valor para continuar.
Dá-se a ilusão para o paciente de que 40 sessões são suficientes para a “cura”, outro aspecto muito médico, e pouco psicológico, uma vez que a “cura” tem outro sentido para a psicologia.
Assim, chegamos na parte mais importante de todas, que é a diferença entre a forma como a medicina trata o paciente, e a forma como a psicologia trata o paciente. Se falarmos em psicanálise, aí que a distância fica ainda mais gritante. Por isso a grande tendência é encontrar psicólogos comportamentais ou de terapias breves nesses planos de saúde: porque são as práticas psicoterapêuticas que mais se adequam a esse modelo médico de diagnóstico-cura que a medicina propõe.
Portanto, se eu acho uma coisa boa essa novidade? Não, eu não acho. Mas não vamos ser ingênuos. Sabemos que sempre tem coisa boa nessa bagunça toda. Porém ainda acredito que os benefícios são poucos em relação aos problemas. Falando da minha prática: eu não trabalho com planos de saúde. Se é pra receber de 18 a 30 reais de um plano de saúde, prefiro fazer um acordo com meu paciente e receber esse valor, mas diretamente dele, livre para fazermos nosso contrato. É a minha forma de tornar o tratamento acessível a todos e não me vender a esse processo que não acho justo. Não passo um mês sem pensar que poderia me conveniar e assim ter mais pacientes e indicações. E sei que muitos colegas trabalham com planos de saúde e têm boas experiências com eles. Acho que a decisão de cada um conta muito aqui e cada um trabalha da forma como acha mais certo para si.
Fiz esse post porque escuto muito que a psicologia é elitista (a psicanálise, principalmente), que os psicólogos não gostam de convênios e que cobram caro… Estou escrevendo isto para explicar um pouco mais e mostrar que nem tudo é tão simples quanto parece.
Acredito que podemos nos informar mais, ler mais, e a partir daí tirar nossas próprias conclusões. Mas não podemos ser ingênuos para achar que tudo isso é uma verdade absoluta, porque não é. Estou aqui compartilhando com vocês minhas opiniões e os caminhos que estou traçando, e espero que vocês possam também traçar o de vocês.
(E esse assunto sempre dá uma boa briga, rs.)
…
Se você não gosta de ler textos grandes, ou tem algum tipo de deficiência visual, eu fiz uma pequena discussão sobre o texto nos vídeos abaixo.