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A publicidade e o fracasso dos ideais

Nosso tempo contemporâneo, seja ele pós-moderno, hipermoderno ou o fracasso da modernidade, é um tempo de descontinuidade. Ficou no passado o período em que determinados ideais reinavam imperiosos oferecendo suas certezas, ainda que não inclusivos e para poucos. Para a maior parte das pessoas, as nomeações tinham um efeito de sustentação desses ideais, bastava nos adaptarmos a eles. Nos formulários, por exemplo, você escolhia se era do sexo feminino ou masculino, se era solteiro ou casado, escrevia o nome do seu pai e da sua mãe, dizia a cor da sua pele. Tudo parecia muito simples.

Hoje as respostas já não são mais tão simples. Estamos no cerne de longas e profundas transformações sociais advindas especialmente dos que se sentiam excluídos por esses ideais e nomeações, ou seja, do que ficava de fora. A parcela de pessoas que ficava excluída e “sobrava” era muito grande, mas não tínhamos ainda espaço para lidar com esses números. O fato é que o ideal era para poucos e o que ficou de fora por muito tempo, retornou demandando reconhecimento. O que ficou de alguma maneira excluído da possibilidade de nomeação, insiste para ter seu espaço. Assim, temos vivido uma enxurrada de novas possibilidades de identificações e renomeações, na busca por evidenciar a pluralidade de diferenças. Não é mais tão simples preencher no formulário o nome do pai e da mãe, porque passamos a ter famílias com duas mães e/ou dou pais. Fazer um x no espaço que identifica nosso gênero, por exemplo, ficou complicado para algumas pessoas trans que ainda não sabem como devem se identificar entre as opções masculina e feminina. De alguma maneira, tudo como conhecíamos vem sendo descontruído e reconstruído de uma maneira inquietante e veloz. As siglas aumentam, as nomeações aumentam e mesmo assim fica a sensação, no final do dia, que nada disso ainda é o suficiente para dar conta da diferença, anunciando que muito mais está por vir.

Toda essa avalanche de situações e novidades apresentam novos dilemas, ninguém se salva. Como se referenciar a homens e mulheres quando essas duas categorias não parecem mais ser suficientes para distinguir as pessoas? Como reconstruir nossos lugares sociais, nossos ideais e fantasias quanto tudo está mudando tão rapidamente e as pessoas ainda não conseguiram apreender a importância dessas tentativas (muito mais do que o sucesso ou o fracasso delas)?

No meio dessa confusão, publicitários, grandes vendedores de imagens, tentam encontrar um porto seguro para trabalhar. Quando as imagens de um ideal passam a não servir mais, outras imagens tomam a frente, em uma quantidade impressionante. Por trás de toda imagem vendida por um publicitário, existe um ideal atrelado. Assim, aprofundar-se no que está sendo vendido é importantíssimo para um profissional ter sucesso na venda de suas imagens e ideais. Não basta mais fazer uma promoção em que a mulher ocupa um lugar secundário, de esposa ou mãe. Esse ideal já não corresponde a maior parte da realidade das mulheres hoje. Usando ainda o exemplo das mulheres, elas têm se permitido construir diversos espaços para ocupar e representar. Portanto, como fazer uma propaganda voltada para o público feminino que possa incluir a vasta dimensão do que é ser mulher hoje?

A partir de questões que não possuem respostas fáceis, muitas pessoas tem se implicado, dedicando tempo, estudo e criatividade para construir propagandas que possam ser inclusivas, ou seja, buscam achar soluções que permitam diversas possibilidades e que de alguma maneira não ofendam gratuitamente a nenhum grupo específico. É uma missão dificílima, já que tudo se parece muito com um terreno em erosão. Os publicitários engajados já sacaram que uma propaganda nunca será apenas uma propaganda inocente; que questões políticas estão mais presentes do que nunca e que não podem simplesmente ser deixadas de lado. Mas nem sempre é assim. Infelizmente.

Essa semana, tivemos um exemplo de como uma propaganda infeliz pode ter um desfecho trágico. Uma churrascaria publicou em sua página do facebook uma propaganda que pode nos ajudar a pensar no que estamos colocando em pauta. A propaganda era a seguinte:

Propaganda 01

Em uma primeira olhada, não observamos nenhum crime ou afronta gritante acontecendo na propaganda. Percebemos que o desconto é proporcionado de acordo com o gênero da pessoa que se apresenta no estabelecimento e isso gera algumas questões. Ao meu ver, nada que não pudesse ser esclarecido de uma maneira tranquila e inteligente, ainda que pautado em um ideal que hoje fracassa. Sabemos que a questão dos gêneros é um assunto extremamente atual e suscita paixões e questões importantes, como, por exemplo, sobre o lugar da mulher em uma sociedade ainda extremamente machista. Logo, o esperado aconteceu: algumas mulheres questionaram o motivo do desconto apenas para mulheres. A questão é bastante pertinente para os tempos atuais. Mas parece que não foi isso que os responsáveis pelo anúncio pensaram. Frente a questão, sobre o que faria mulheres “merecerem” pagar mais barato, a discussão ferveu nos comentários da página. A discussão entre os usuários caminhava para: (1) a mulher não “merecer” mais ou menos do que homens, já que a luta pela igualdade de direitos defende essa postura; e (2) usar a idéia de gênero para justificar uma meritocracia está fracassada como ideal na atualidade e sempre gera mal estar. Ao invés de encarar o mal estar já instalado, o restaurante decide:

cancelamento e mimimi

A partir do posicionamento acima, o que era apenas um caso de propaganda mal planejada passa a ser uma questão de descaso com possíveis clientes. Responder a inquietações de algumas possíveis clientes foi tomado como bobagem, “mimimi”. O texto ainda deixa claro que, na ética da empresa, vale tudo para conseguir atenção, a qualquer custo. E já que o objetivo foi atingido (“o restaurante está cheio”), as questões políticas suscitadas pela propaganda não passam de “blá blá blá”.

Estamos todos vivendo no tempo da inexistência de uma suposta neutralidade: tudo é posicionamento político, inclusive a decisão por não participar ou por permanecer em silêncio. Fazer pouco caso da problematização de algumas pessoas não poderia ter sido mais infeliz. O restaurante poderia ter saído dessa sinuca de bico de diversas maneiras, mas preferiu agir com deboche frente a uma questão que é muito séria para alguns. A partir disso, o tom de guerra já estava instalado.

Não satisfeitos com o resultado da avalanche de críticas frente a propaganda e o posicionamento do restaurante, eles novamente mudam seu posicionamento, mas dessa vez para explicitar a posição política:

Reiteração da propaganda machista

“Apoiamos medidas que confortem às famílias nesta crise, PRINCIPALMENTE OS PAIS DE FAMÍLIA que somando os gastos DA ESPOSA E FILHAS acabam muitas vezes deixando de participar do almoço de confraternização apenas pelo preço”.

Aqui nesse trecho fica evidente a posição política e o ideal que sustentaram a propaganda desde o início: a cena de uma família em que o homem sustenta a casa e suas mulheres (esposa e filhas) e que por isso deve ganhar desconto para pagar por elas. Reparem ainda que a imagem usada, das mulheres com coraçõezinhos, só reforça um outro estereótipo sobre mulheres, que elas se reúnem apenas para falar de suas paixões e romances).

A frase e a foto carregam um ideal tradicional e machista que vem sendo insistentemente desconstruído ao longo dos últimos anos. No quesito família, já aprendemos que as famílias hoje são de diversas formas: mães solteiras, dois homens, duas mulheres, enfim, diversas apresentações que não se enquadram nesse ideal de família descrito. No quesito gênero, existem diversas famílias que são sustentadas por mulheres e diversas outras famílias em que o casal divide igualmente suas despesas, ou seja, o gênero já não define mais claramente o lugar da mulher nem do homem nas relações. No que tange a foto, sabemos que os assuntos das mulheres são os mais plurais possíveis, ou seja, dá pra brincar de desconstruir esse ideal antigo e frágil sem se esforçar muito. O preconceito e o machismo na resposta são explícitos.

Se isso já não fosse um problema suficiente para ser pensado, existe ainda uma outra questão: o discurso de ódio que é gerado por esse tipo de posicionamento (anti)ético. Em um dos posts, o restaurante faz questão de afirmar que não se responsabiliza pelos comentários em sua página. Justifica que não possui tempo para ler comentários e moderar, algo que atualmente é esperado com responsabilidade social de qualquer empresa que decide habitar o espaço online. Não se responsabilizar pelo conteúdo gerado em usa página vai na contramão do que temos acompanhado nas redes sociais, de empresas preocupadas com a inclusão. Assim, assistimos a um show de horror e ódio:

coment machista 01 coment machista 02 coment machista 03 coment machista 04 coment machista 05 coment machista 06

Esses comentários, todos masculinos, reforçam as suspeitas que não calaram: o machismo existe, e forte! Por que o fato de algumas mulheres questionarem as bases que sustentavam o desconto do preço, pautado por gênero, incita tanto ódio nas respostas das pessoas? Por que mulheres precisariam comemorar isso que é chamado de “cavalheirismo”, um “benefício”, que na verdade só evidencia uma condescendência gigantesca com elas? Sendo a sociedade justa na questão de gêneros, mulheres e homens poderiam pagar e ter os mesmos descontos, sem que isso fosse um peso para o outro gênero. Ao não se responsabilizar pelo discurso de ódio, o restaurante comete uma segunda violência com essas mulheres, reafirmando que elas precisam aceitar sempre o que um imperativo social machista diz que elas devem gostar ou não.

E só piora. As mulheres se voltam contra as próprias mulheres:

coment mulher 01 coment mulher 02 coment mulher 03 coment mulher 04

Desde quando um pedido de igualdade de direitos, independente dos gêneros, se torna uma questão de falta de pinto? Mulheres que lutam por igualdade de gêneros não podem ser consideradas mulheres? Exigir respeito e igualdade de gênero sempre vai terminar reduzido a piadas ridículas sobre pênis? A vida de uma mulher se resume a encontrar um homem que a queira?

Como podemos perceber, uma única propaganda pode fazer muito estrago. Tudo é política. Tudo carrega um ideal sobre o ser humano e suas relações. As desconstruções não param de acontecer e novos ideais e respostas não param de surgir. Será que podemos conviver com a idéia de que perguntas não são um problema? O problema real aqui parece ser a falta de espaço para o debate e o respeito ao diferente nas discussões. Até quando ainda teremos publicidades como essa? Até quando as pessoas ainda vão achar graça disso tudo e continuar rindo?

Como disse Duvivier em uma entrevista recente, fazer humor é tomar partido. Ou seja, até o humor é político. E sim, podemos escolher nossas piadas e do que rir. Fazer piada de quem está lutando por seus direitos não parece nada divertido.

 

O que a literatura contemporânea nos ensina sobre as crianças de hoje?

Terceira Reunião Aberta do GECLIPS que aconteceu em Junho.

Convidadas: Profa. Doris Carneiro e Mestranda Lilian Lima Maciel

O áudio começa com a fala da Profa. Doris que comenta sobre seu livro A Cidade Faz de Conta. A partir do minuto 25:25 a fala da Lilian é sobre a crítica a literatura infantil e a obra de Lygia Bonjuga.

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Violência e Infância: Precisamos falar sobre todos os Kevins

Em abril o GECLIPS (grupo de Psicanálise que faço parte) realizou a Segunda Reunião Aberta do GECLIPS. Eu dividi a mesa de debates com o Promotor de Justiça de Uberlândia, Dr. Epaminondas da Costa. Deixo com vocês o áudio da nossa conversa. 

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De onde fala meu silêncio

Parto do pressuposto que o silêncio diz. A ausência de palavras deixa espaço para o ato de dizer, para além de enunciados. Tão logo os afetos e sentimentos ganham palavras para descrevê-los, algo já se perdeu. Assim como numa tradução entre línguas em que algo sempre se perde, dos afetos e sentimentos para as palavras, algo já se perde também. E estou aqui apenas problematizando sobre o meu lado da história, já que pensar no segundo momento que é o de quem lê, que já lê uma terceira coisa, outra, bem diferentes, nem se fala…

Silencio as palavras para escutar a mim mesma e aos outros. E nesse silêncio eu respondo, Um a Um. Ainda não aprendi como sair dele e usar as palavras sem que elas falem para uma massa e por isso me atenho no meu silêncio. Ele diz que estou invocada e mergulhada no Um a Um. Estou apaixonada por esse sujeito do inconsciente, do desejo, que só se apresenta no seu particular e de maneira bem evanescente. Não consigo mais deixar que as palavras saiam afobadamente num discurso cheio de conhecimento e de saber, mas de pouca verdade. Uma psicanalista disse em um evento, semana passada, que não entende porque tantos psicanalistas são convocados e vão responder sobre questões diversas do mundo. Um psicólogo, um sociólogo ou qualquer outro profissional que estuda o humano poderia muito bem responder essas questões, com propriedade. Um psicanalista não deveria ter que dizer nem formular nenhum saber sobre nada disso, já que ele se sustenta no não saber. Os sujeitos que o convocam é que tem muito a dizer e a partir daí oferecemos a escuta disso, que vem daquele que demanda algo, não o inverso. A frase foi: A psicanálise está em todos os lugares e o psicanalista em outro. Vendo a psicanálise em tantos lugares, estou em outro. Essa tem sido a minha aposta nos últimos anos, mas tenho certeza que existem outras. Por isso aqui falo apenas de mim e de um momento específico, porque também tenho certeza que virão outros. Por hora é esse. $ <> a

 

 *A frase foi enunciada por Nina Leite em um evento que logo será divulgado em vídeo.

*Estou no Um a Um por ai, sempre darei notícias disso. O silêncio é também trabalho.

Primeira Reunião Aberta do GECLIPS – Expressão artística e o universo da imaginação na infância

Convidados:

Prof. Paulo Lima Buenoz

Profa. Silvia Maria Cintra Silva

Prof. João Luiz Leitão Paravidini (GECLIPS)

 

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O fracasso da inclusão

Vivemos a época de uma infância marcada por problemas de aprendizagens e de uma sociedade marcada pelo desejo de inclusão. Bom, quanto a isso, posso apenas afirmar que o processo de inclusão, assim como o da educação, está fadado ao fracasso. Porque há sujeito.

Enquanto todos correm para fazer cursos de psicopedagogia ou quaisquer outros cursos que busquem adaptações para os indivíduos, esses mesmo indivíduos se antecipam a criam novos sintomas (novas dificuldades de aprendizagem, rejeições aos objetos facilitadores da tal inclusão, etc). Assim, os doutores na arte da adaptação (em busca de uma “qualidade de vida) ficam loucos e sentam novamente em seus bancos acadêmicos para entender porque tudo isso falha, na esperança de criar novas fórmulas adaptativas e funcionais para esses “errantes”. Chega  a ser uma linda batalha, se não fosse trágica.

Qual erro insistimos em cometer? A psicanálise já repetiu tanto essa resposta… Desde Descartes (e antes) cometemos o mesmo erro: não dar voz ao sujeito. Quantos anos de pesquisas inutilizadas para compreender que o sujeito fala com seu sintoma, com sua recusa a adaptações, com sua dificuldade de aprendizagem? E acho que ao longo dos anos os fracassos ficaram gritantes: esses sujeitos não estão satisfeitos. E no final das contas ninguém está.

“Para a psicanálise, o sujeito está, por principio, implicado em todo ato. Por sinal, como todo aquele que consulta desconhece essa implicação, visa-se no inicio criar condições para que o sujeito se interrogue sobre as causas daqueles episódios que tonto o incomodam” (Lajonquiere). Essa pretensão de alguns educadores e membros da sociedade em achar que podem vir a saber sobre a singularidade subjetiva de uma pessoa (aluno, deficiente, etc) a partir de si mesmo está obviamente fadada ao fracasso!

Charles Melman já falava disso quando escreveu que o primeiro problema quando se fala de educação de crianças é o lugar em que nos colocamos. Cada um de nós recebeu um tipo de educação, e por isso já temos conceitos formados sobre o que é melhor ou não, o que funciona e o que não funciona. Quando trocamos de lugar e passamos ser os responsáveis pela educação de outros, deixamos de lado a criança de hoje, colocando nossas queixas e reinvindicações e fórmulas em primeiro lugar. O mesmo vale para o deficiente, já que a inclusão prevê a criação de diversos mecanismos e aparelhagens para que ele fique menos “prejudicado” e possa seguir “na mesma condição que as outros”. Um ideal impossível esse, seja deficiente ou não. Estar em mesmas condições, quando isso é realidade para qualquer pessoa??

Nesse sentido, a melhor educação é a que fracassa. Melman já dizia isso porque acreditava que toda educação tende a colocar o mesmo ponto de vista em todas as crianças, e tem a pretensão de formar cidadãos iguais. A inclusão repete a mesma bobagem. Partindo do ponto de vista do sujeito da psicanálise, um sujeito único, com direito de escolha, talvez faça mesmo parte da constituição do sujeito viver contra e a favor da educação que recebeu, pelo resto de sua vida. Quando esse sujeito, a sua maneira, fracassa, está de alguma maneira se apresentando como sujeito. Está se recusando a repetir, e nós assistimos aos milhares de sintomas que aparecem todos os dias no âmbito escolar.

“Só podemos concluir que o investimento narcísico na infância, ou a ilusão da criança-esperança, é uma invenção sintomal da modernidade, então, não é casual que a pedagogia hegemônica atual se articule em torno a uma louca exigência, qual seja, demandar à criança que venha de fato a concretizar sem resto nenhum um ideal de completude e bem-estar. Estamos diante de uma fatalidade e, assim sendo, os educadores de hoje estão condenados à lamentação pela suposta ineficácia profissional, uma vez que a educação das crianças não poderia não estar tomada senão por um voto narcísico” (Lajonquiere)

No final das contas, esse discurso social, a partir da educação e da inclusão, sustenta uma proposta que enfatiza a preocupação com a inclusão, mas o que opera é um agrupamento que novamente resulta em crianças e deficientes na posição de objeto. O discurso educacional é pró-inclusão mas o desejo manifesto ainda é de “normalização”, atuando na perspectiva de “curar” algo que falta no desenvolvimento das crianças. Essas práticas normalizantes tratam as pessoas como objetos, e partir de uma norma que é externa a elas. Resultado: fracasso, claro. Aceitar permanecer como objeto no mínimo resulta em certos adoecimentos.

Alguns, como sujeitos, rejeitam. Não aprendem. Não se adaptam. Algo sempre falha. E ao rejeitar aquilo que lhes é oferecido, um mal estar surge e transborda para todos os lado. Certos de que o que oferecem é fundamental para a evolução da criança, os adultos passam a apontar uma série de problemas, como se eles pudessem explicar ou justificar o porquê da recusa. Só não param para pensar que nessa lógica a criança fica em posição de objeto, permanecem alienadas ao desejo do Outro, que dita o lugar que elas devem ocupar, o que devem aceitar e utilizar para se constituir. Se por um lado podem ficar presas nesse lugar de perda ao negar as ofertas de ajuda, ao não aceitar aquilo que lhes é oferecido, esse movimento pode apontar algo de um desejo, de um posicionamento particular em relação ao lugar que lhe é estabelecido dentro da rede de relações sociais e familiares. Ao recusar ocupar esse lugar, algo se desloca dentre de uma lógica em que essa criança está inserida.

Se a recusa acontece pelo desejo de não ocupar um lugar dentro de um grupo (crianças com problemas de aprendizagem, crianças deficientes, etc) e se constituir de forma singular, ou pelo desejo de não aceitar o lugar já estabelecido no âmbito familiar e social, o fato é que já existem muitos lugares fabricados pelo discurso social para essas crianças. A escuta psicanalítica nos permite tomar o fracasso dessas crianças como uma tentativa de implicação subjetiva. Há fracasso porque há sujeito. Então que a inclusão e a educação continuem fracassando.

 

Era apenas uma manhã de segunda-feira

Era uma manhã de segunda-feira e eu estava a caminho do meu consultório. Duas quadras antes do prédio, encontrei diversas pessoas paradas fitando uma mulher que, enlouquecida, destruía uma carro estacionado na esquina de uma rua. A cena seduzia e mantinha muitas pessoas paradas, em silêncio,  olhando aquela destruição acontecendo bem ali, na avenida movimentada de um bairro de Uberlândia. Eu parei e olhei. Em cinco minutos percebi que ela já havia destruído os detalhes do carro e agora tentava de todo jeito quebrar os vidros. As mãos sagravam, já que os golpes pouco estragavam os duros vidros do carro, mas faziam um enorme estrago em suas mãos. Não dava mais pra ficar parada testemunhando apenas: me aproximei dela, calmamente.

Eu: “Senhora, tudo bem com você? O que está acontecendo?”

Ela me olhou e continuou destruindo o carro, e agora tentava abrir o compartimento de combustível: “Nada, fica preocupada não, esse carro aqui é do meu marido, aquele filho da puta. Eu vou matar ele, mas antes vou destruir esse carro. Você tem um fósforo ai? Vou por fogo no carro.”

Eu: “Infelizmente eu não fumo e não ando com fogo, mas posso te oferecer um copo de água, papel e álcool para você limpar suas mãos, elas estão sangrando”.

Ela para por alguns segundos e olha para as mãos. Só ai percebe que elas estão destruídas, em pedaços, sangrando. Ela para e me mostra os braço roxos: “Isso não é nada em função do que ele me fez, você não sabe”.

Eu: “Ele te bateu?”

Ela: “Não, isso aqui é roxo do hospital, acabei de sair de lá. Fiquei internada com depressão e convulsão, tudo porque ele me largou. Minha filha está passando fome, não temos o que comer enquanto ele tá ai comprando carro, dando dinheiro pra outra mulher. Eu ajudei ele a construir tudo que ele tem hoje, isso não vai ficar assim”.

Nessa altura ela já estava chorando. Finalmente consigo convencê-la a sentar em um banco da praça para que eu pudesse buscar uma água e papéis para ela se limpar. Nessa hora alguém já havia chamado a polícia (que estava a caminho) e um dos homens, que também observava tudo, foi em busca do marido dela que trabalhava ali perto.

Quando voltei, ela estava sentada sozinha, mais calma. As mãos tremiam e o álcool fez a mão arder. Ela recomeçou o choro, tirou de dentro da bolsa alguns papéis e me pediu para ler. Enquanto eu olhava, ela se limpava e me mostrava as feridas causadas pela psoríase que havia começado junto com as crises de convulsão que teve ao receber aquela ordem judicial. No papel, a convocação era clara: ele pedia o divórcio e oferecia trinta por cento de um salario mínimo de pensão para a filha adotada. Ele declarava que não suportava mais as loucuras da esposa, que o ameaçava constantemente. Ela chorava e explicava que nada daquilo era verdade, que ela havia construído uma vida com ele e agora estava sozinha, sem nada. Perguntei se ela havia entrado em contato com algum advogado e ela disse que a lista de espera era de três meses, mas a audiência era naquela semana.

Perguntei se ela tinha com quem conversar, se fazia algum acompanhamento psicológico e ela me falou o nome do psiquiatra e da psicóloga que a acompanhavam. Sugeri que ela procurasse por eles naquele dia, mas nem consegui terminar de conversar pois fomos interrompidas por um rapaz trazendo notícias do marido dela. Ela se levantou com muita raiva ao escutar o recado do marido: “o carro não era dele e que ela ia ser presa”. Ela se alterou, dizendo que o carro era dele e ele negava pois não tinha habilitação. Disse que ia destruir todo o carro e matar ele. Me direcionando ao rapaz, comento que ela já estava se acalmando, o que ela confirma, me agradece e diz que vai encontrar seus médicos no posto para pedir algum atestado médico que a ajude em sua defesa. Ela falou mais alguma coisa que não entendi direito pois a essa altura ela já estava indo embora.

Pessoas imobilizadas pela loucura de uma mulher. Risadas de escárnio. As mãos de uma mulher completamente machucadas, sangrando. A tentava de destruição do outro que resultava apenas na destruição dela mesma. Lagrimas e sofrimento.

Eu falei pouco, mas senti que precisava estar ali com ela apenas como presença, com escuta.

Isso tudo me fez pensar no projeto do Consultório de Rua, que começou focado no atendimento aos indivíduos envolvidos em situação de risco, drogas e álcool, mas hoje acaba acolhendo várias pessoas como crianças, adolescentes e famílias que passam pela praça e sentem a oportunidade de conversar, contar suas dificuldades e compartilhar dúvidas e tristezas com aqueles profissionais que estão ali toda semana. Essa proposta de intervenção fora do setting tradicional nos conta de um outro lugar para a escuta e para a transferência, mas que tem como aposta a possibilidade de uma intervenção terapêutica que se dirige não ao indivíduo apenas, mas ao sujeito que se arraga a essas pequenas oportunidades para emergir, na tentativa de construção de algum sentido a partir de situações de puro nonsense. Essa disponibilidade para a escuta nas mais variadas situações é o que mais me impressiona nas práticas psicanalíticas fora do setting tradicional.

Há os que dizem que a psicanálise não se encaixa nas exigências sociais modernas. E há também os que apostam que ela consegue (como nunca), dar conta desse Real avassalador que nos cerca o tempo todo, em cada esquina. 

*Consultório de Rua, saiba mais: http://www.brasil.gov.br/enfrentandoocrack/superacao/projetos-bem-sucedidos/consultorio-de-rua

Escrever para que?

2011 para mim foi um ano de muita escrita. Escrevi muito aqui e escrevi muito para a academia. E a escrita acadêmica tem algo de trabalhoso, como uma escultura que precisa ser trabalhada pelo escultor, que também não sabe muito bem qual será o resultado final.

Sempre me incomodei um pouco com o processo de autoria e o por quê de escrever um texto. Em algum texto meu anterior aqui no blog eu já havia discutido a idéia do porquê escrever. Escrevemos por vários motivos, mas a escrita que mais me movimentou nesse ano foi a singular, ou seja, aquela que teve algo de inédito e particular. Sem esse toque especial, ou seja, sem algo minimamente novo no texto, penso que ele perde um pouco o sentido. Repetir, pra que? Se for por acrescentar pelo menos uma vírgula, ai até posso entender o motivo da escrita. Mas apenas para repetir? Não, obrigada.

E no meio acadêmico, as vezes a escrita parece de um gozo em looping: todo mundo falando das mesmas coisas de maneiras quase parecidas. Vejo revistas (periódicos) em que os artigos parecem sempre falar de uma mesma coisa. Parece que as pessoas precisam ouvir muitas vezes a mesma idéia, dita várias vezes por pessoas diferentes, para acreditar naquilo que é já é realidade na prática, ou melhor, na vida. Teorizar muito pode ter esse problema. E posso dizer que esse é um problema que eu enfrento constantemente na minha escrita. Quantos são os textos e páginas que eu simplesmente jogo fora por achar que são apenas repetições de coisas já ditas. E não adianta tentar me convencer de que “esse é o modo como eu vejo isso, então isso é novo”, porque isso não me convence. É preciso ter algo de novo sim, e que tenha sentido não só para mim. O tempo é muito curto pra perder tempo repetindo. Ficaria mais fácil indicar a leitura e não escrever todo um texto para defender algo que já foi escrito.

Talvez por isso eu esteja escrevendo menos no blog. Porque quando navego pela internet, tenho a sensação de que todo mundo já está dizendo tudo e todos já estão dando as informações e suas opiniões sobre elas. Por outro lado, talvez eu tenha escrito menos também porque certos temas são delicados, as pessoas não estão preparadas para ouvir o âmago da questão sobre determinados assuntos. Escrever desse jeito pode suscitar mais agressividade do que de fato a abertura para um dialogo reflexivo.

Tenho um texto de 2008 que faz muito sucesso. Outro de 2010 que também tem muitos comentários. Mas, tanto tempo depois, ainda recebo comentários e conclusões repetidas de pessoas diferentes,e isso me deixa levemente irritada. Talvez hoje eu entenda melhor a resistência de Lacan em escrever. A fala, a aula, o diálogo nesse sentido é muito mais movimento. E por sempre se dirigir a alguém “concreto”, talvez produza algo de mais genuíno no presente, entre quem fala e quem escuta. Porque esse ouvinte não tem nada de passivo. É uma construção ali, na relação. Já na escrita, o leitor pode ser movimentado, mas não necessariamente o escritor. Vejo tantos textos que parecem ter sido escritos por robôs… Não sei divago… Talvez por estar muito envolvida no trabalho analítico com meus pacientes, percebo a importância da construção em análise. Aquilo que é feito em transferência ali no hora. Que depois não é a mais a mesma coisa. Que fora do setting não tem muito sentido. Acho que estou pensando assim da escrita um pouco. É uma maneira de se pensar, que, obviamente, não é a única. Talvez a escrita esteja mais para o tempo de compreender e momento de concluir.

Talvez eu me incomode também com o lugar da repetição, como conceito analítico, no processo de constituição e implicação subjetiva das pessoas. Bom, mas isso já é tema para outro texto.

Psicanálise e Psicose Infantil a partir do filme “A viagem de Chihiro”


Como estudar psicanálise? Essa pergunta aparece e reaparece constantemente nos corredores da Universidade e aqui no meu blog. Me lembro sempre de um professor que, a respeito dos Seminários de Lacan, dizia que fazia pouca diferença por onde começar os estudos já que a entrada seria sempre abrupta. Outro dia, pensando sobre a estruturação de um Grupo de Estudos em Psicanálise, eu tentava decidir quais textos freudianos utilizar, e, ao pedir opinião de um outro professor, escutei a mesma frase sendo dita: “Pouco importa por onde começar, sempre haverá muito que se dizer e a entrada sempre será a partir de um corte.”

Em psicanálise você não estuda e aprende: você estuda, pensa, questiona e transmite. E o que se transmite? Segundo Lacan, algo de um saber não sabido. Se retomamos a idéia de inconsciente estruturado como uma linguagem que é não-toda, ou seja, a partir do Real, sempre haverá algo de  inominável. O real não se diz, mas algo produz um efeito que tentamos nomear a partir do simbólico.

Com essa breve introdução, apresento o Seminário desenvolvido pelos meus alunos da disciplina de Psicopatologia II, que aconteceu no curso de Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Uberlândia. Germano Almeida, Caroline Mazzutti e Nayara Santana apresentam o seminário, com a colaboração de Jordhan Coeli e Sarah Rodrigues.

O seminário está dividido em dois vídeos. Todas as referências são apresentadas ao final do segundo vídeo. Recomendamos que vocês assistam primeiro o filme “A viagem de Chihiro”, já que oferecemos aqui algumas considerações a partir do filme.

Parte 1

http://www.youtube.com/watch?v=YaxCNYnHUWs

 

Parte 2

http://www.youtube.com/watch?v=9z5hfSvVZ3E

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