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A morte é quando a gente não fala mais

“A morte é quando a gente não fala mais”

A tentativa de suicídio na infância, quando levada a cabo por sujeitos neuróticos, sempre implica um apelo, razão pela qual ela jamais é pura passagem ao ato. Ela sempre denota uma dificuldade no relacionamento com aquele que o sujeito institui no lugar do Outro. Denota que algo passou despercebido ao Outro mesmo que, muitas vezes, o sujeito tenha chamado atenção para isso de outras maneiras.

O que quero dizer com isso é que as pessoas precisam parar com essa história de : “fulano só faz drama, só quer chamar atenção”, “se quisesse se matar mesmo já tinha feito” e tantas outras frases do gênero. Oras, se uma criança/adolescente “precisa” atuar de forma tão violenta contra eles mesmos para “chamar atenção”, esse ato deveria causar preocupação e não descaso.

Devemos nos preocupar e ouvir esse grito, um apelo a um sofrimento que não tem destino. Falo isso não apenas nos casos de tentativa de suicídio, mas também nas diversas psicopatologias infantis que acompanhamos, como as automutilações, os atos violentos, uso de drogas e tantas outras situações que acontecem de maneira cada vez mais precoce.

A respeito especificamente da depressão na atualidade, recomendo a leitura do mais novo livro de Maria Rita Kehl, intitulado O Tempo e  o cão. É praticamente um tratado sobre a atualidade da depressão com exemplos da literatura e de casos clínicos.

Aproveito e deixo também um vídeo que preparei para uma aula que dei nessa semana sobre o tema do Desamparo. A idéia do vídeo (que foi feito com uma seleção de cartões postais do Post Secret) era de tentar viver um pouco disso que é uma dor, uma angústia sem nome que muitas pessoas sentem em alguns momentos da vida, quando não por uma vida toda. Temos essa tendência a achar que deprimido é tudo gente dramática, mas não nos aproximos disso que é uma sensação de horror e desamparo diante da vida, que não só não tem fim, como parece impedir qualquer tipo de simbolização. Uma saudade de um tempo que foi e não volta nunca mais. Uma saudade que as vezes não se sabe nem do que. De qualquer maneira, nos aproximando desse campo de sensações, podemos tentar lidar com essa realidade sem julgar com tanta rapidez. Será que conseguimos?

O ato violento

Hoje fui abordada por 3 viaturas policiais na rua. Já estava em frente ao prédio do meu consultório. Três carros nos abordaram de forma súbita, já com armas apontadas para dentro do carro, pedindo que saíssemos com as mãos pra cima e encostássemos no carro. Por ser mulher, pediram que eu ficasse de lado e prosseguiram com o procedimento de revista em meu marido que, assustado, não fazia exatamente o que os policias pediam.

Depois dos 5 minutos de estresse geral (da nossa parte e da parte dos policiais), eles nos explicaram o que aconteceu e porque a abordagem: perseguiam dois “marginais” que estavam no mesmo local com o mesmo tipo de carro.

 

Medo, angústia, terror, humilhação, impotência.

 

Um evento desses, obra do puro acaso, me fez pensar sobre o desamparo e a sensação de impotência e angústia que ele produz. E não podemos deixar de pensar na realidade das pessoas em que situações como essa não são acasos, já se tornaram parte de uma realidade cotidiana e rotineira. Vocês conseguem imaginar o que é morar em um bairro/favela em que todo dia você passa por situações que te confrontam com sentimentos tão arrebatadores com o medo, a angustia, o terror, a humilhação e a impotência?

De passagem pelo Rio de Janeiro (que, aliás, é minha cidade natal) para um evento, percebi o quanto a violência foi internalizada pelos moradores de lá. Parece que eles já não se assustam mais com os tiros que correm soltos pela noite e muito menos com o cheiro de urina e esgoto que percorre toda a cidade e suas lindas paisagens. E para aqueles que não conseguem acomodar esses afetos na rotina, existe o álcool e a droga para amenizar, anestesiar. Para outros ainda existe o ato violento, como forma ativa de rebeldia contra isso que é avassalador desse dia a dia da ordem do horror.

Mas, voltando ao lugar distante dessa realidade crua (que por vezes é jogada na nossa cara), me pergunto como podemos viver em um jogo de cartas marcadas, sem se deixar afetar por isso que é o horror de uma vida permeada de medo, humilhação, violência. Nos apressamos logo para dar destinos a esse mal estar, com políticas de pão e circo, e até mesmo políticas de saúde para todos, segurança social, contenção de situações de risco… E no final, não enfrentamos o mal estar que existe e permeia nossas relaões sociais. Será que isso é utopia ou possibilidade?

Então por hoje, não vou dar destinos a esse mal estar. Vou apenas falar dele e deixar o efeito produzir algo mais do que apenas um sentido.

 

Do século da criança ao século do desamparo

Já contei para vocês em um post anterior que eu participei no Conlapsa desse ano. Então agora estou disponibilizando o audio dos trabalhos apresentados na mesa em que participei. A mesa tinha como título “Do século da criança ao século do desamparo”, e era composta por três trabalhos:

1.“Do século da criança ao século do desamparo: problematizações da passagem do século vinte ao vinte e um em Freud, Lacan e Klein”

2.“Que lugar para a criança e o adolescente no século XXI?”

3.“Que lugar para a criança com deficiência visual no discurso social contemporâneo?” – Esse foi o meu trabalho.

O audio abaixo contém a apresentação dos três trabalhos e do pequeno debate que aconteceu no final. Se você só quiser escutar o meu trabalho, pode pular para o minuto 32:30 que é exatamente onde começo. Ou pode entrar lá no link que só tem o audio da minha apresentação, já cortada.

Espero que gostem!

Conlapsa

Participei do Conlapsa, evento que aconteceu no começo dessa semana na UERJ, Rio de Janeiro. O evento foi grandioso e cheio de novidades para compartilhar. Assisti muitos trabalhos e apresentações e também participei de uma mesa com apresentação de trabalho. Vou editar o áudio da apresentação assim que possível para compartilhar com vocês.

Se você estava no evento e quer saber um pouco mais do trabalho sobre Deficiência Visual, entre no site que desenvolvo sobre o tema: www.sitiodainclusao.com.br

 

A certeza delirante

” A ignorância nunca me fez falta ” ( Clarice Lispector )

Já fizeram o ato de recortar frases que uma vez foram ditas e escritas dentro de um contexto, e depois utilizá-las de modo a servir um interesse, uma mensagem pessoal endereçada a um outro? Essa semana uma mensagem me foi endereçada dessa forma. E me fez logo pensar em outra frase e em todo um texto para explicar essa briga de frases.

Fiquei me perguntando de qual contexto saiu o dito da Lispector. Porque, pensando ela dentro de uma mensagem que me foi endereçada, ou seja, para pensar a Psicanálise e seu lugar como ciência e prática, terei que discordar da afirmação. Aliás, para a Psicanálise é fundamental que se duvide, ou seja, que possamos olhar o mundo e os fenômenos podendo duvidar do que está tão claro e certo, e de que é possível criar uma verdade absoluta para todas as coisas.

“… a análise só pode encontrar sua medida nas vias de uma douta ignorância. Do lado do analista, também convém considerá-la, mas aí ela deve ser somente concebida enquanto a “ignorância douta, o que não quer dizer sábia, mas formal, e que pode ser, para o sujeito, formadora” Lacan.

Lacan nos ensinou que um dos grandes desafios do analista é atuar nessa posição de uma douta ignorância. Estudamos muito sim, mas quando estamos com um paciente, é preciso deixar esse conhecimento de lado para olhar a singularidade de quem chega em nosso consultório. Se já recebemos o paciente cheios de certezas, com a lista pronta só aguardando um enquadramento, não será possível escutar o que ele tem a nos dizer, e assim poder entender um pouco da lógica de funcionamento daquele sujeito e de sua verdade particular. É um exercício constante, para o Psicanalista, desse papel de douta ignorância. Mas, para ficar minimamente confortável nessa posição, o próprio analista deve ter passado por sua análise pessoal, de forma a ter tido tempo e disposição de lidar com suas próprias verdades e certezas absolutas e se desprender delas.

Só o psicótico tem tanta certeza sobre tudo. Só ele porta a verdade universal. O psicótico não supõe o saber ao outro, ele tem uma certeza, o psicótico é um sujeito de certeza, o psicótico não está aberto à significação fálica, não duvida de nada. A metáfora delirante é uma tentativa de dar sentido ao que está fora do sentido, por isso existem as construções delirantes que no entanto, no seu limite, têm um ponto nodal, que é fora do sentido.

Assim, posso afirmar que no campo psicanaítico sustentamos uma certa ignorância sim. E isso tem aparecido inclusive em toda essa questão sobre a posição da profissão do Psicanalista e sua suposta regulamentação. Não é possível sustentar  um curso que dê conta, em um tempo pré-determinado, de formar psicanalistas, como se todos passasem por uma máquina e em pequenas formas deixasse os alunos prontinhos para ter sua carteirinha, seu registro e atender. Oras, isso sim é ignorância. Me espanta essa tentativa de transformar a Psicanálise e seu campo em uma verdade Absoluta, como se ela fosse a verdade pura. E para isso, bastaria nos matricular nesse “curso”, e no final nós não só saberemos da verdade, como poderemos transmiti-la. Isso está parecendo tanto com o discurso religioso, não?

Base da psicanálise: Não existe verdade absoluta, não existe um saber universal, e talvez essas sejam nossas únicas certezas. Podemos começar a construir algo em cima disso? Claro! Mas não para produzir novas verdades Absolutas. Elas serão sempre provisórias…

“A psicanálise é uma experiência que, ao contrário de hipnotizar o sujeito, visa revelar aquilo que já o hipnotiza desde sempre, desde sua própria constituição. A alienação, por ser um “fato mesmo do sujeito”, segundo Lacan, ou seja, estruturante, nem por isso deixa de ser alienação. O despertar em jogo na análise indica, por sua vez, o caminho da separação.” Marco Antonio Coutinho Jorge


A formação do Psicanalista e a tal regulamentação

Eu de novo com esse assunto. Porque nunca deixa de ser importante falar de alguns temas e esse é um deles.

Já falei sobre o tema aqui, aqui, aqui e aqui. Outras pessoas também falam sobre isso o tempo todo, como vocês podem ver aqui.

E agora vou só retomar o Manifesto que os Psicanalistas fizeram e que ainda é importante divulgar.

Informe sobre a Regulamentação da Psicanálise 
(preparado pela Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro)

No dia 01/04/2004, uma comissão de representantes do Movimento das Entidades Psicanalíticas Brasileiras esteve em Brasília para discutir a questão da regulamentação da psicanálise, com os deputados Simão Sessin, autor do PL 2347/03 (que tramita na Comissão de Seguridade Social e Família, da Câmara Federal), e Walter Feldman (relator do projeto na Câmara).

O objetivo da Comissão foi o de dissuadir os parlamentares de levarem adiante o PL 2347, para votação, já que, segundo avaliação dos psicanalistas do Movimento, trata-se de mais uma tentativa equivocada de regulamentação do ofício de psicanalista. Neste encontro, foi mencionado o MANIFESTO DAS ENTIDADES aos Srs. parlamentares e entregue um dossiê sobre as iniciativas no sentido do exercício e da regulamentação da psicanálise, pelos evangélicos.

O deputado Simão Sessin informou que apresentou o projeto a pedido dos evangélicos, uma vez que estes haviam procurado seu sobrinho, deputado estadual pelo Rio. Manifestou-se surpreso com o relato dos representantes do Movimento das Entidades Psicanalíticas, sobretudo com a sentença do Juiz Federal contra a SPOB, provocada pelo Ministério Público de Brasília. Preocupado por não ter tido mais cuidado em ler e avaliar melhor a natureza do projeto, e por desconhecer que um PL semelhante (PL 3944/00), do deputado Éber Silva, já havia sido arquivado na legislatura passada, propôs então encontrar uma saída adequada para a situação. Comunicou à Comissão que negociaria junto ao relator, o deputado Feldman, para a retirada do projeto. Neste sentido, pediu à Comissão do Movimento que preparasse um arrazoado com argumentos contrários à regulamentação, para que fosse pedida a retirada do PL para melhor avaliação.

O deputado Walter Feldman declarou que já tinha tido a oportunidade de receber um grupo de evangélicos, que lhe solicitara o apoio ao projeto. Informou que seu assessor fez a proposta de um substitutivo que oferecesse aos evangélicos o reconhecimento e regulamentação de uma prática, da qual a psicanálise estivesse excluída. Esse argumento teria por objetivo, apenas, a proposição da regulamentação das psicoterapias Foi então esclarecido ao deputado, que a prática psicoterápica já se encontra sob o controle dos Conselhos de Psicologia, e que qualquer nova medida que viesse a legislar sobre as mesmas acabaria incluindo a psicanálise. 

Feldman sugeriu que se realizasse uma audiência pública no Congresso, mas os representantes do Movimento argumentaram que o ideal, no momento, do ponto de vista dos psicanalistas, seria a retirada do Projeto de Lei. Num segundo momento seria organizado um debate sobre o tema, no Congresso, sendo então convidados os psicanalistas para apresentarem suas argumentações aos congressistas, com o intuito de se evitar que outros parlamentares, a exemplo de Simão Sessim, se dispusessem a apresentar projetos semelhantes, sem prévio conhecimento do assunto. O deputado mostrou-se simpático à idéia de a psicanálise ser considerada uma prática leiga, não regulamentada pelo Estado, e concordou com a proposta do deputado Simão Sessim, no sentido da retirada do projeto. Finalmente, comprometeu-se a ler os documentos que lhe foram entregues, inclusive o do Ministério Público, e a fazer contato com os psicanalistas do Movimento, a posteriori.

Manifesto das Entidades Psicanalíticas Brasileiras
– texto aprovado na reunião de março de 2004 –

Há mais de cem anos, Sigmund Freud trouxe uma contribuição inestimável para a humanidade, inventando um dispositivo de investigação e tratamento clínico, a psicanálise, que permanece até hoje como a mais importante e séria abordagem do psiquismo humano. Ao mesmo tempo em que esclareceu a estrutura do psiquismo, acolheu de maneira criativa e inédita o sofrimento de pessoas que sem esse recurso seriam reduzidas ao silêncio e estariam sujeitas a dificuldades cada vez mais graves. Após esse ato de invenção, o mundo nunca mais foi o mesmo, e a psicanálise de tal forma marcou a cultura que nem sempre é imediato reconhecermos a sua influência, que atingiu as artes, a ciência, a política, as regras do convívio, a educação, e muitos outros domínios e instituições humanas. 

É essencial, portanto, que esse instrumento que Freud nos legou seja tratado com cuidado, para que não se percam os seus melhores efeitos ao se desvirtuarem os seus princípios.

Uma das questões mais sensíveis da história da psicanálise diz respeito às condições legais do seu exercício, que têm provocado discussões bastante intensas, praticamente desde o começo, e em geral desencadeadas a partir de iniciativas – dos Governos ou dos Parlamentos – que visam dar à psicanálise um estatuto de profissão. 

No nosso País não tem sido diferente, e a cada vez os psicanalistas têm vindo a público explicar em quê consiste o seu ofício, como são formados aqueles que o exercem, e por que a psicanálise resiste à regulamentação.

A ocasião mais recente foi há pouco mais de três anos, quando psicanalistas de diferentes tendências e orientações, e representando dezenas de instituições psicanalíticas estabelecidas, de notório reconhecimento público, se reuniram para, juntamente com entidades representativas dos médicos e psicólogos, fazer frente a um projeto que, finalmente, foi recusado pelos deputados antes de ir a plenário.

Na época, preocupava-nos também a criação no Brasil de cursos que, embora se utilizassem de uma referência expressa à doutrina freudiana, eram notoriamente inspirados por grupos religiosos, que, faltando-lhes qualquer participação prévia no já secular movimento psicanalítico, se propunham a formar profissionais-psicanalistas, sem se mostrarem capazes de garantir que eles tivessem o necessário embasamento, adquirido através da imprescindível experiência ética de uma longa análise pessoal, acrescida de uma exigente formação teórica e de uma assídua supervisão de casos clínicos. Tampouco eram claras as suas posições em relação aos princípios que regem a nossa prática.

A partir dessa época, vimos seguindo atentamente as iniciativas que, no parlamento brasileiro ou fora dele, visam à regulamentação do nosso ofício, transformando-o em profissão, pelos riscos que trazem para os princípios que defendemos. 

Há pouco tempo, tomamos conhecimento de mais um projeto de lei, desta vez de autoria do deputado Simão Sessim, do Rio de Janeiro, de número 2347, datado de 22 de outubro de 2003, que se inscreve numa série de outros que ao longo do tempo foram recusados pelos parlamentares brasileiros, ao constatarem que esses projetos, uma vez aprovados, e seja qual for a boa vontade que está nas suas origens, agravariam os males que pretendem sanar: historicamente, ou porque subestimam a necessária singularidade da formação de um psicanalista, ou porque confiam essa formação à Universidade, sem atentarem para o fato de que ela não pode dispor dos necessários instrumentos para levar a cabo essa tarefa, malgrado, por outro lado, nossa Universidade prestar incontáveis bons serviços ao nosso País, em vastos campos. 

Associamo-nos portanto a todos os movimentos de resistência à tentativa de normatização dos ofícios que relevam fundamentalmente de implicações subjetivas de cada um, e vimos em público reafirmar a psicanálise no seu compromisso de sustentar a singularidade das pessoas que pedem a sua ajuda, assim como daquelas que a exercem, considerando sua relação e compromisso com a cultura e a sociedade onde vivem.

 

Trabalho, ocupação e emprego: singularidade e criatividade

“É preciso trabalhar, é preciso ganhar dinheiro, é preciso fazer o que não se quer para fazer o ciclo se movimentar.”

“Quando conseguimos fazer o que queremos, os engessamentos são enormes e terminamos por não produzir e criar como um dia sonhamos.”

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=8mqhxmHuq4c

O B.O.

Já era quase madrugada
Neste querido Riacho Fundo
Cidade muito amada
Que arranca elogios de todo mundo

O plantão estava tranquilo
Até que de longe se escuta um zunido
E todos passam a esperar
A chegada da Polícia Militar

Logo surge a viatura
Desce um policial fardado
Que sem nenhuma frescura
Traz preso um sujeito folgado

Procura pela Autoridade
Narra a ele a sua verdade
Que o prendeu sem piedade
Pois sem nenhuma autorização
Pelas ruas ermas todo tranquilão
Estava em uma motocicleta com restrição

A Autoridade desconfiada
Já iniciou o seu sermão
Mostrou ao preso a papelada
Que a sua ficha era do cão
Ia checar sua situação

O preso pediu desculpa
Disse que não tinha culpa
Pois só estava na garupa

Foi checada a situação
Ele é mesmo sem noção
Estava preso na domiciliar
Não conseguiu mais se explicar
A motocicleta era roubada
A sua boa-fé era furada

Se na garupa ou no volante
Sei que fiz esse flagrante
Desse cara petulante
Que no crime não é estreante

Foi lavrado o flagrante
Pelo crime de receptação
Pois só com a polícia atuante
Protegeremos a população

A fiança foi fixada
E claro não foi paga
E enquanto não vier a cutucada
Manteremos assim preso qualquer pessoa má afamada

Já hoje aqui esteve pra testemunhá
A vítima, meu quase xará
Cuja felicidade do seu gargalho
Nos fez compensar todo o trabalho

As diligências foram concluídas
O inquérito me vem pra relatar
Mas como nesta satélite acabamos de chegar
E não trouxemos os modelos pra usar
Resta-nos apenas inovar

Resolvi fazê-lo em poesia
Pois carrego no peito a magia
De quem ama a fantasia
De lutar pela Paz ou contra qualquer covardia

Assim seguimos em mais um plantão
Esperando a próxima situação
De terno, distintivo, pistola e caneta na mão
No cumprimento da fé de nossa missão


Riacho Fundo, 26 de Julho de 2011 (Fonte: Blog do Elidio)

 

Segundo Bauman, na modernidade líquida (nosso momento atual) uma das características básicas é a especialização flexível e a mentalidade predominante é de curto prazo, individualizada, sustentada pela flexibilidade e, exatamente por isso, plena de incertezas, sem estruturas para manutenção do vínculo entre emprego e capital. Hoje, o compromisso das organizações está firmado com os consumidores e não com os produtores, decorrendo ênfases excessivas na lucratividade e competitividade. Assim, muitas pessoas começaram a buscar oportunidades ligadas ao funcionarismo público, como uma chance para exercer um trabalho que pudesse dar oportunidades e ser menos opressor e ligado uma certa produtividade. Mas a coisa não mudou muito: o governo também tem suas metas e seus anseios produtivistas. E, mais do que isso, existe uma fórmula, um jeito em que as coisas são e devem ser feitas. Você entra no molde, faz a máquina se movimentar, mas fica uma pergunta: onde fica o desejo, onde fica a singularidade?

Trabalho, ocupação ou emprego?

Na Antigüidade, o trabalho era entendido como a atividade dos que haviam perdido a liberdade. Um misto de sofrimento e infortúnio. O homem, no exercício do trabalho, sofre ao vacilar sob um fardo. O fardo pode ser invisível, pois, na verdade, é o fardo social da falta de independência e de liberdade. Os gregos utilizavam duas palavras para designar “trabalho: ponos, que faz referência a esforço e à penalidade, e ergon, que designa criação, obra de arte. Isso estabelece a diferença entre trabalhar no sentido de penar, ponein, e trabalhar no sentido de criar, ergazomai. Parece que a contradição “trabalho-ponos” e “trabalho-ergon” continua central na concepção moderna de trabalho. Pode-se observar em diferentes línguas (grego, latim, francês, alemão, russo, português) que o termo trabalho tem, em sua raiz, dois significados: esforço, fardo, sofrimento e criação, obra de arte, recriação.

Começamos então a distinguir labor e trabalho. Essas palavras têm etimologia diferente para designar o que hoje se considera a mesma atividade. O primeiro é um processo de transformação da natureza para a satisfação das necessidades vitais do homem. O segundo é um processo de transformação da natureza para responder àquilo que é um desejo do ser humano, emprestando-lhe certa permanência e durabilidade histórica. Na Antigüidade, um homem livre podia cansar-se em certas circunstâncias e, ainda assim, obter satisfação da situação. Era rejeitada não a atividade em si ou o trabalho manual, mas a submissão do homem a outro homem ou a uma “profissão”.

No século XVIII, com a ascensão da burguesia, com o desenvolvimento das fontes produtivas, com a transformação da natureza e com a evolução da técnica e da ciência, enfatizou-se a condenação do ócio, sacralizando-se o trabalho e a produtividade. Para o homem dos tempos modernos, o tempo livre inexiste ou é escasso. “Tempo é dinheiro“. A lógica do trabalho perpassou a culturae todas as atividades humanas passaram a ser foco de negócios ou tornaram-se oportunidades para alguém ganhar dinheiro, lógica que se apoderou de todas as esferas da vida e da existência humana. Para grande maioria das pessoas, o trabalho transformou-se em emprego.

Para colocar mais pimenta nessa sopa, vamos pensar em ocupação. Na Antigüidade, as ocupações eram entendidas como atividades que visavam à satisfação pessoal e eram desenvolvidas por escolha própria O aparecimento da economia monetária acentua a distinção entre ocupação como meio de ganhar a vida e ocupação como meio de manter o status quo. Cada sociedade, na sua dinâmica estrutural e conjuntural, cria e recria a ocupação humana. “A ocupação de uma pessoa é a espécie de trabalho feito por ela, independente da indústria em que esse trabalho é realizado e do status que o emprego confere ao indivíduo

Trabalho não é ocupação, todas as classes sociais detêm sua forma de ocupação, e todas as pessoas mantêm sua ocupação. Assim como o camponês, o proprietário, na medida em que conserva uma função positiva, tem sua ocupação. O que caracteriza o operário ou trabalhador, no sentido mais restrito, é que ele trabalha para outra pessoa. Ele é (não tenhamos medo de dizer) um servidor.

Já a palavra emprego, da língua inglesa,  se referia a alguma tarefa ou determinada empreitada; nunca se referia a um papel ou a uma posição numa organização. A conotação moderna do termo emprego reflete a relação entre o indivíduo e a organização onde uma tarefa produtiva é realizada, pela qual aquele recebe rendimentos, e cujos bens ou serviços são passíveis de transações no mercado. O emprego é um fenômeno da Modernidade. Os empregos tornaram-se tanto comuns quanto importantes; passaram a ser, nada menos, do que o único caminho amplamente disponível para a segurança, para o sucesso e para a satisfação das necessidades de sobrevivência. Com o passar do tempo, as pessoas foram aprendendo ofícios que as tornaram detentoras de empregos, passando, a partir daí, a serem parte do tipo de força de trabalho que emergia. Dentro da lei da oferta e da procura, proporcionar-se-ia emprego a todos os indivíduos que estivessem dispostos a trabalhar.

Mas porque falar sobre todos esses termos e suas diferenças? Porque na hora de analisar esse ato de “rebeldia”, devemos ter em mente que lugar esse delegado ocupa em relação ao seu trabalho. Ficamos tão presos a necessidade de um emprego, que esquecemos da possibilidade de exercer uma ocupação, algo que seja prazeiroso e, mais ainda, que possa produzir sentido para quem o exerce e para quem depende dele. Podemos pensar nos engessamentos, e como eles são produzidos não apenas nas empresas, instituições e locais de trabalho, mas também por nós. Arrisco dizer que estão primeiro em nós. E poucos são os que tem força para subverter essa ordem. Quem diria que um trabalho como esse poderia ser executado de maneira tão diversa… Quem diria que qualquer emprego poderia ser executado de maneira singular…

Ele está infeliz com seu trabalho? Disso não podemos dizer. Criar poesia onde não se esperava não é indicio de frustração. Ao contrário, é sinal de criatividade. Ele teve coragem de produzir um ato de singularidade que possibilitou movimento em seu trabalho? Com certeza. O que será que ele nos ensina com esse ato?

Considerações sobre Internet e Alienação Pt3

*Leia primeiro – Parte 01 e Parte 02

2. Constituição do sujeito: alienação e separação


Quando apontamos o caráter narcísico do sujeito que utiliza a Internet, falamos do narcisismo como um momento necessário na evolução da libido, antes que o sujeito se volte para um objeto externo. Essa tempo é responsável pela formação do “eu” (Freud,1914). Pensando o narcisismo como parte do processo de constituição do sujeito, vamos abordar os conceitos lacanianos de alienação e separação. A inclusão do conceito de alienação na teoria psicanalítica, que aconteceu a partir das teorizações de Lacan, tem importantes conseqüências teóricas e clínicas. Mas de que alienação tratamos?

Segundo Lima (2006), o termo é uma tradução habitual do alemão entfremdung, característico da filosofia de Hegel e Marx. Hegel o empregava para indicar o ato de estar alheio à consciência. Este “estar alheio” é uma fase do processo que vai da consciência à autoconsciência. Marx utiliza o conceito de alienação retomando a temática hegeliana da função do trabalho na passagem “do senhor e do escravo”. Para Hegel, o trabalho representa a expressão da liberdade reconquistada. Se o ser do senhor se descobre como dependente do ser do escravo, em compensação, o escravo, aprendendo a vencer a natureza, recupera de certa forma a liberdade. Marx critica a visão otimista do trabalho em Hegel e demonstra como o objeto produzido pelo trabalho surge como um ser estranho ao produtor, não mais lhe pertencendo: trata-se do fenômeno da alienação. Marx observa que a visão idealista de Hegel não considera a materialidade do trabalho, privilegiando a consciência. Para Marx, a propriedade privada produz a alienação do operário, seja porque ela cinde a relação do operário com o produto do seu trabalho (que pertence ao capitalista), seja porque o trabalho permanece exterior ao operário. Quando Lacan iniciou os trabalhos de releitura da obra freudiana, sua leitura era  perpassada pelo hegelianismo, principalmente nos primeiros Seminários. Mas o conceito lacaniano de alienação não é de um acidente ao qual o sujeito sobrevive ou que pode ser transposto, mas sim uma marca constitutiva essencial. O sujeito só se funda a partir de uma alienação fundamental, está alienado de si mesmo, não tem maneira de fugir dessa divisão. Lacan (1964) utiliza os termos alienação e separação referindo-se às operações lógicas de constituição do sujeito. Diante do desamparo originário, o bebê é completamente submetido a um outro, que será responsável não só pela satisfação de suas necessidades básicas como também pela sua constituição subjetiva. Essa dependência inicial que liga o sujeito ao outro constitui a alienação.

Segundo a formulação de Lacan (1960), a alienação é própria do sujeito; ele nasce por ação da linguagem:

 

“O lugar de Outro, que a mãe ocupa neste momento, oferece significantes, através da fala; o sujeito se submete a um dentre os vários significantes que lhe são oferecidos pela mãe. O seu ser não pode ser totalmente coberto pelo sentido dado pelo Outro: há sempre uma perda. Joga-se aí uma espécie de luta de vida e morte entre o ser e o sentido: se o sujeito escolhe o ser, perde o sentido, e se escolhe o sentido, perde o ser, e se produz a afânise, o desaparecimento do sujeito” (Bruder & Brauer, 2007).

 

Segundo Lacan (1964), a alienação reside na divisão do sujeito de sua causa. O Outro é o lugar de sua causa significante, razão pela qual nenhum sujeito pode ser causa de si mesmo. Quando bebês, somos totalmente dependentes de um outro para sobreviver. Chamamos isso de desamparo original. E é neste momento em que acontece o encontro com o Outro, encontro que produzirá as primeiras experiências de satisfação. É nesse momento também que o bebê deve se alienar a esse Outro para que possa se constituir. Mas, ao se submeter a essa alienação, perde algo de si, algo que fica perdido para sempre. Mas se não se permite a alienação, também perde a possibilidade de entrar no campo da linguagem.

Ao se alienar ao desejo do Outro, o bebê fica sujeito aos desejos e anseios destes que ocupam o lugar do Outro. A mãe e o pai enxergam no bebe aquilo que ele ainda não é, mas pode vir a ser. Essa possibilidade de construção que a mãe enxerga em seu bebê é o que pode dar a possibilidade de um futuro advento de um sujeito.

Já a separação, outro tempo fundamental neste processo, implica no fato de que todo esse processo de alienação deixa um resto, uma vez que o sujeito busca no Outro aquilo que lhe falta, aquilo que ele abdicou e perdeu para se tornar sujeito. É como se o Outro pudesse sempre complementar aquilo que falta ao sujeito. A separação só pode acontecer quando o sujeito percebe que o Outro também é faltante. O surgimento da falta no Outro remete o sujeito à própria falta, ou seja, à constatação da sua impossibilidade de completar o Outro. A operação de separação é marcada pelo confronto com a falta no Outro, e, posteriormente, quando o sujeito tenta construir, no fantasma, uma resposta à falta do Outro: “O que o Outro quer de mim?”. (Lacan, 1964)

 

Na separação, o sujeito irrompe na cadeia significante, e se destaca o objeto a. Essa operação de separação permite que o sujeito encontre um espaço entre os significantes onde irá se constituir seu desejo, no que seu desejo é desconhecido; o sujeito retorna então ao ponto inicial, que é o de sua falta como tal. Isso indica que alienação e separação não são “fases” estáticas, e mostra a oscilação permanente que se verifica no sujeito entre alienação e separação, como uma alternância sempre renovada.” (Bruder & Brauer, 2007).

 

Refletindo sobre o tema

 

Vivemos na chamada “Era da Internet”, um tempo em que tudo é possível (essa é a mensagem repassada todos os dias nas propagandas, nas revistas, nos programas de TV). Entre os usuários da rede, é comum escutarmos a seguinte brincadeira: Se não está no Google, não existe. Nessa linha de pensamento, para existir na atualidade é preciso estar presente na Internet, ou melhor, é preciso ser visto. As explosões de Redes Sociais podem ser indícios dessa necessidade de marcar presença. Mas precisamos escutar o que esses fenômenos querem nos dizer para além do preconceito que Lévy nos aponta.

Ainda sim, lembrando o processo de constituição subjetiva, é importante destacar que este processo implica um movimento do sujeito para fora de sua redoma narcísica ilusoriamente auto-suficiente em direção aos objetos do mundo, movimento esse provocado pela experiência de insuficiência de seus recursos imaginários. Ou seja, o sujeito deve romper com a posição de submetimento ao Outro. O processo de socialização é resultado dessa negociação do sujeito com a cultura. Se o sujeito é constituído pelo processo de alienação e separação, a separação significa o seu movimento em direção à realidade, ao social, em detrimento da satisfação alucinatória, onipotente, imaginária.

O que tem acontecido e tem sido muito exaltado pelos psicanalistas que escrevem sobre a Internet e seus efeitos nos sujeitos, é dimensão alienante e imaginária que a Internet intensifica, mostrando seus efeitos, por exemplo, no gozo da imagem, no amor a si mesmo, nas posições subjetivas de fazer-se, com seu narcisismo, de objeto de desejo do Outro, dando a impressão de não ter falta. No momento em que o sujeito deveria se movimentar em direção a realidade, ao social, ele se dirige para a Internet, e lá ele continua numa posição alienante, pois a Internet parece preencher o lugar do Outro completo, tamponando a falta e deixando o sujeito ainda em permanente alienação a esse Outro. A partir dessa relação, não consegue prosseguir no tempo da separação e portanto fica preso em seu tempo, não se constituindo um sujeito, não se apropriando e se responsabilizando de seu desejo.

Podemos perceber essa problemática na forma com as pessoas passam dias imersos Online, fascinados pelas possibilidades de laço social que ela permite, mas sem conseguir de fato construir esses laços. Essas pessoas estão conectadas a muitas outras pessoas, mas sofrem cada vez mais de sensação de isolamento, abandono e desamparo.

Minha proposta não é apenas de apontar essa problemática já tão bem articulada por alguns psicanalistas. Retomo Levy (1999) para dizer que é impossível regredir a uma realidade em que a Internet não se faz presente. Portanto é importante pensar que a experiência dos sujeitos com a Internet nem sempre é essa que apontamos. Estamos em um momento crucial de aceitação de uma realidade para a tentativa de subversão da posição subjetiva a que as pessoas tem se colocado, admiradas, enfeitiçadas pela forma como a Internet parece prometer muitas possibilidades. Existe um movimento de algumas pessoas na utilização da internet, com um objeto que pode trabalhar a favor de uma responsabilização subjetiva. Vimos a explosão dos Blogs, por exemplo, em uma tentativa de simbolização usada não apenas por jovens, mas também por Jornalistas, Políticos e muitos outros. Assim, me parece pertinente prosseguir em uma investigação que possa nos apresentar dados de experiências diversas na Internet, de pessoas que se colocam não apenas como usuárias e consumidoras de todo um esquema social, e sim de uma ferramenta que pode trabalhar a favor da causa do sujeito.

Se hoje a Internet faz parte dos avanços tecnológicos como um meio de comunicação totalmente inserido na organização social, talvez também seja o momento de se apropriar dela como ferramenta, como algo que podemos utilizar para outros fins.  Se a Internet transformou a realidade, novos estudos se fazem necessários para a transformação de um sujeito receptor (usuário, consumidor, alienado) em um sujeito que é produtor de uma comunicação singular, processo que o caracteriza como sujeito, de fato.

 

Considerações sobre Internet e Alienação Pt 2

A primeira parte deste texto está aqui: Parte 01
1. Contemporaneidade e Internet

Freud (1930), em seu artigo O mal estar na civilização, convoca os psicanalistas a se ocuparem do mal estar do homem no mundo civilizado e a se interessarem pela subjetividade contemporânea. Isso porque a psicanálise está interessada na causa da insatisfação e da angústia do sujeito com o mundo dos objetos. Essa insatisfação já havia sido notada por Freud desde então, pois sua experiência clínica o levou a pensar a tensão nas relações entre sujeito e sociedade e nas formações sociais construídas como respostas ao conflito, que acabava por acarretar mais sofrimento do que seu enfrentamento. O que muda hoje é a realidade em que esse sujeito vive. Ao estudar as modalidades do sofrimento psíquico, os sintomas, compreende-se a sociedade da qual os sujeitos fazem parte, ao mesmo tempo em que ao estudar a sociedade e suas formações compreende-se as modalidades de sofrimento psíquico presentes na história de vida dos homens, num determinado tempo histórico.

Para nos situarmos no tempo social em que vivemos atualmente, Santos (1986) nos conta que o pós-moderno nasce com a computação e oferece à sociedade muitas facilidades trazidas pelas tecnologias. Na modernidade se buscava a essência do ser e no pós-moderno as pessoas recebem tudo pronto com o advento da tecnologia. O autor defende que com a tecnologia as pessoas ficaram mais presas em suas individualidades. No plano econômico, o modelo é chamado capitalismo flexível, no qual o homem se entrega ao presente e ao prazer, ao consumo e ao individualismo. Santos(1986) ainda afirma que entre os indivíduos e o mundo estão os meios tecnológicos de comunicação, que não informam sobre o mundo e sim o refazem à sua maneira.

Freud (1930) também fala da modernidade segundo a tecnologia, que caminha junto com a sociedade no sentido de frustrar e distanciar cada vez mais os sujeitos do prazer verdadeiro que eles busca, pois proporciona benefícios que os satisfazem de forma barata, ou seja, dão uma sensação de falsa satisfação. E como a angústia é cada vez maior entre sujeito e sociedade, a tecnologia funciona como uma forma de tamponamento do sofrimento, mas nunca o soluciona por definitivo.

Mas será que essa relação entre homem e tecnologia continua a mesma? Se vivemos um período social que nasceu junto com a inserção tecnológica, como vem acontecendo o avanço dessa relação? Para começar a pensar nesta pergunta, Kaplan (1993) escreve:

 

“O desconforto do homem moderno – enquanto estreante na relação com as máquinas em profusão na pós-revolução industrial –, na pós-modernidade já não é mais identificado. O que existe é uma integração. Um homem-máquina, sem visão crítica em relação às novas tecnologias, uma vez que faz parte dela e por isso não possui distanciamento para avaliar seus efeitos. Se na Antigüidade o homem e a esfera pública eram uma coisa só, na pós- modernidade, será a vez da união entre o homem e a tecnologia.”

 

As opiniões são diversas quando o assunto é a relação entre homem e tecnologia. Lipovestky (1989) escreve:

 

“Não que a sofisticação das tecnologias não tenha auxiliado na constituição da pós-modernidade. Houve sim uma revolução do sujeito ancorada na avalanche tecnológica, mas a tecnologia não enterrou o indivíduo, apenas o tornou mais forte, um verdadeiro Narciso. O que ocorre na pós-modernidade é uma supremacia do sujeito, muito mais do que na modernidade, um aprimoramento do indivíduo que começou a se desenhar enquanto ser absoluto durante o período anterior.”

 

Homem-máquina ou Narcisos, essas pessoas se apropriaram rapidamente da Internet, que surgiu como personagem principal das possibilidades tecnológicas. Mas ao ler estas opiniões, sinto uma toque de nostalgia por parte dos autores, como se fosse  possível pensar no mundo contemporâneo sem Internet. Em relação a esta postura, Lévy (1999), discute a inserção social na internet assumindo que ela é parte do contemporâneo e não pode ser retrocedida.

Se a internet se faz presente como condição da contemporaneidade, Lévy (1999) é contudente quando diz que existe um preconceito infundado com relação à Internet, uma avaliação negativa que não leva a nada, já que as novas tecnologias da comunicação estão bem afirmadas e nada pode deter sua ação no campo antropológico. Para Lévy (1999), a Internet é mais do que uma realidade, ela é parte fundamental da nova sociedade, estando muito além da discussão sobre a validade ou não da comunicação à distância e a necessidade de preservar as diferenças. Ele complementa:

Incansavelmente, é preciso lembrar a frivolidade do esquema da substituição. Da mesma forma que a comunicação por telefone não impediu que as pessoas se encontrassem fisicamente, já que o telefone é usado para marcar encontros, a comunicação por correio eletrônico muitas vezes prepara viagens físicas, colóquios ou reuniões de negócios. Mesmo quando não é acompanhada de encontros, a interação no ciberespaço continua sendo uma forma de comunicação. Mas, ouvimos algumas vezes dizer que algumas pessoas permanecem horas “diante de suas telas!”, isolando-se assim dos outros. Os excessos certamente não devem ser encorajados. Mas dizemos que alguém que lê “permanece horas diante do papel?” Não. Porque a pessoa que lê não está se relacionando com uma folha de celulose, ela está em contato com um discurso, uma voz, um universo de significados que ela contribui para construir, para habitar com sua leitura”  (Levy, 1999, p. 162).

 

Em um primeiro momento, essa afirmação de Lévy pode soar utópica. Mas se voltamos a pensar na singularidades das experiências, parece importante pensar que cada pessoa utiliza a internet a sua maneira, e com isso existem diversas possibilidades nesta relação. Inclusive se começarmos a olhar a Internet em termos de funcionalidade, com tudo que ela proporciona (leitura de livros, escrita de textos, central de notícias e etc.), começaremos a abrir um campo de possibilidades. Se muitos psicanalistas defendem que a internet acentua o narcisismo dos sujeitos, não é por isso que devemos nos distanciar e deixar de pensar numa realidade sem ela. Ao contrário, podemos pensar nas possibilidades que podem ser construídas quando não nos deixamos engolir pela pulsão narcísica.

É claro que não se podemos negar a existência de um caráter extremamente narcisista na contemporaneidade. Por isso vamos pensar um pouco sobre esse o processo de constituição subjetiva e no que ele é impactado pela Internet.

Continua….

Parte 3 chega já já.

Considerações sobre Internet e Alienação Pt. 1

Parte 01

Escrever sobre Internet pelo viés da Psicanálise deixa a sensação de pisar em terreno pantanoso. Nomeio como pantanoso esse campo, esse (des)encontro, porque os psicanalistas que escrevem sobre esse tema parecem se posicionar numa escrita cuja perspectiva é negativa, apontando apenas os problemas. Mas me percebo neste lugar em que utilizo muitos recursos da internet e ao mesmo tempo estou imersa no campo da psicanálise clínica e teórica. A partir desse encontro de campos, me sinto instigada a pensar essas questões, pois acredito que não fazê-lo seria como ignorar um dos aspectos pontuais da atualidade. Jovens e crianças, a quem chamamos de “nativos” usuários da internet e da tecnologia vivem uma realidade que já pressupõe esses dois campos em suas vidas.

Muitos textos psicanalíticos falam das impossibilidades na Internet: são artigos diversos que teorizam sobre a alienação que a Internet promove. Nesse sentido, podemos pensar que a internet ocupa o lugar do Outro ao qual o sujeito permanece alienado? Se propomos uma análise sob o enfoque da experiência pessoal, tão singular quanto ela pode ser para cada sujeito, será que a internet é alienante para todos? Incentivada por essas questões, desejo problematizar a relação entre a alienação na  internet para, posteriormente, refletir sobre a possibilidade de um sujeito do desejo utilizador da Internet.

É importante destacar o lugar teórico de onde começo e que dá suporte a toda essa discussão. Parto de um pressuposto psicanalítico calcado na impossibilidade de um saber sobre tudo. Entendo que essa possibilidade de tudo ter e fazer que a nossa sociedade tecnológica vende pretende apenas tamponar uma falta, uma impossibilidade que é inerente a condição humana. Maria Rita Kehl (2003) nos alerta para os impasses no trato com a tecnologia:

 

“A velocidade vertiginosa em que novas tecnologias de mídia eletrônica são lançadas o mercado, cada qual com a pretensão de tornar obsoletas todas as anteriores, faz com que muitos teóricos dessa área considerem também obsoletos os conceitos utilizados para pensar a sociedade contemporânea. Não compartilho da crença nessa obsolescência dos conceitos. Por um lado, ela me parece um efeito de alienação: sentimos que nossos recursos críticos ficam obsoletos na medida em que a propaganda dos poderes da tecnologia faz com que acreditemos que cada nova invenção é realmente capaz de arrasar todo o passado e nos projetar em direção a um futuro absoluto. Nós, pensadores e críticos da sociedade contemporânea, somos também presas desse temor de nos tornarmos obsoletos, de ver as categorias do nosso pensamento ser ultrapassadas pela velocidade das inovações tecnológicas” (Kehl, 2003).

 

Destaco assim a importância de tomar a psicanálise como um conhecimento que não pretende produzir respostas a um certo positivismo e produtivismo social e tecnológico, até mesmo científico. Se me sustento em algum saber, é exatamente no não saber, na impossibilidade de produzir verdades absolutas. Portanto, não pretendo deixar de lado os conceitos fundamentais da psicanálise, que está longe de ser obselta. Pelo contrário, estes conceitos cada vez mais nos ajudam a acompanhar as mudanças sociais e refletir sobre os novos sintomas e novas formas de laço social. Este texto é apenas uma tentativa de circunscrever esse campo que é a Internet.


Continua…

Esse texto tem mais duas partes:

Parte 02

Parte 3

 

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