Dessa vez eu estava indo para Cartagena, na Colômbia. Mas quem eu encontrei primeiro não foi nenhum colombiano e nenhuma praia, foi um garotinho lindo e perdido chamado Christopher.
Estava com meus amigos, fazendo check-in no aeroporto internacional de Guarulhos. Fazia muito frio em São Paulo e reparei em uma senhora e uma criança sentados no chão do aeroporto, perto de uma das portas de entrada. Percebi que no guichê ao lado do meu, um senhor, funcionário da companhia aérea, falava alto e resmungava qualquer coisa enquanto se dirigia a senhora e ao menino, que devia ter no máximo sete anos. Algo dessa cena me capturou. O menino parecia perdido, sem saber o que fazer, enquanto sua avó lamentava e o funcionário falava sozinho.
Escutei o funcionário, que me explicou toda situação: a senhora possuía sete malas de viagem e essa quantidade ultrapassava o limite permitido pela empresa aérea. Deveria escolher apenas quatros malas. Frente a esse problema, a senhora sentou no chão, num misto de choro, lamento e incompreensão, sem conseguir escolher. O menino não sabia o que fazer, a não ser segurar sua mochila e um pote de iogurte. E o funcionário da empresa pedia encarecidamente para que ela decidisse, pois perderia o voo. Ele dizia que queria muito ajudar, que era cristão, mas que não poderia fazer milagres. Ela precisava escolher as malas e abandonar algumas. A senhora apenas falava algo que parecia ser francês, mas uma língua-lamento que ninguém entendia, a não ser o próprio menino, Christopher. Ele falava português e tentava traduzir o que era dito para a senhora, e vice-versa, mas parecia muito perdido com o que estava acontecendo.
Conversei com o funcionário sobre quais seriam as possibilidades da senhora, se ela quisesse levar todas as malas. Outra funcionária se aproximou e disse que ela poderia pagar a multa por excesso de bagagem e levar todas as malas, mas quatro delas iriam como mala de mão. Conversei com Christopher, pedi para ele tentar explicar a situação para a avó (já que ao tentar conversar com ela, não nos entendíamos). Ele conversava com ela, mas parecia envergonhado. Não traduzia para nós o que ela dizia. Logo fui entendendo que ela não tomaria nenhuma decisão, que ficaria ali em seu lamento e isso parecia deixar Christopher totalmente sem ação. Perguntei a ele se ela tinha dinheiro. Ele conversou com ela, e ela me entregou alguns dólares e reais. Fizemos os cálculos e percebemos que aquele valor pagaria o excesso de malas.
Com o dinheiro, pagamos a multa para as malas. Seiscentos reais. Muito dinheiro!! E mesmo assim uma mala ficaria no aeroporto. O que estava naquelas malas parecia ter muita importância para aquela senhora. Com isso resolvido, precisávamos abrir as malas que seriam levadas na mão para tirar objetos que poderiam ser barrados, como líquidos e comidas. Pedi ajuda ao menino para abrir as malas. Fizemos tudo isso enquanto a senhora já lamentava menos, mas apenas observava a movimentação com as malas. Quando ele abriu as malas, tudo que vimos eram coisas muito simples: brinquedos que pareciam ter saído das lojinhas de R$ 1,99; vestidos de tecido barato; sapatos aparentemente comprados na 25 de março; enfim, tudo muito simples. Nada daquilo valeria os seiscentos reais da multa. Algumas fotos caíram da bolsa da senhora e logo fomos percebendo que o valor daqueles itens não era mesmo financeiro, mas sim afetivo… A cada item que tirávamos da mala, porque não poderia ser levado, a senhora chorava e lamentava, mais uma vez. Parecia que estávamos tirando pedaços do corpo dela. Christopher estava inquieto, por vezes embotado, mas seus olhos não me enganavam: estava triste, perdido. A única coisa que disse que é que levaria sua mochila com seus brinquedos. Assim, tiramos diversos objetos e entendi que precisaríamos carregar este menino e essa senhora até a sala de embarque, pois eles não dariam conta nem do peso das malas e nem do peso emocional, seja ele qual fosse.
E lá fomos nós, eu e meus amigos, carregando as malas do menino e da senhora. Eu tentava entender o que estava acontecendo, indignada por pensar que haviam deixado aqueles dois no aeroporto naquelas condições. Mas, algo mais importante estava acontecendo ali. Mesmo sem entender nada, eu já estava extremamente tocada por essa confusão e fiquei ao lado do menino e fui tentando conversar. Perguntei quem ela era e descobri que não era avó, era uma tia. Descobri também que ele estava deixando pai e mãe no Brasil (e por isso muitas vezes olhava para os portões do aeroporto, parecendo em busca de alguém); que estava indo para Porto Príncipe com a avó morar lá, mas não sabia porquê. Basicamente, ele não sabia porque estava indo viajar, parecia não ter muita intimidade com a tal tia e quando mencionei os pais, sobre saudade e afins, ele quase chorou e não quis mais conversar. O que ficou claro é que ele realmente não estava entendendo muito tudo que estava vivendo, mas sabia que estava indo embora morar em outro país.
Ao entrar na sala de embarque, pude pegar os documentos e passaportes dos dois. Os passaportes eram franceses. Não entendi como ele poderia ser brasileiro com passaporte francês, mas achei que se tivesse algo de errado com essa viagem, aparecia na hora que passássemos na policia federal. Passamos e nada aconteceu. Qualquer que fosse a história de Christopher, estava legalizada. Deixamos os dois na frente da sala de embarque. Estávamos exaustos, física e emocionalmente. De longe, observei o menino e percebia o quanto ele parecia sozinho, triste, perdido. Minha vontade era de ficar do lado dele e conversar mais, mas entendi que dali pra frente eu não poderia mais fazer muita coisa por ele. Segui meu caminho.
Quando eu sai de casa, naquele dia, sabia que estava indo para Cartagena, mas não sabia o que estava indo encontrar. Gosto de viajar porque no mundo a gente vive os encontros e desencontros com os mais variados tipos de pessoas e culturas. Porque a vida é feita disso, de movimentos, encontros, desencontros e o que a gente faz com tudo isso. Meu encontro com Christopher nunca mais será esquecido. Ficou um aperto no peito, das tantas histórias que nunca sabemos dessas crianças vivendo as coisas mais doidas pelo mundo. Eu sei que não fiz nada por ele, mas tentei pelo menos estar lá por alguns minutos para construir algum movimento a partir de tanto absurdo e nonsense.
Um dia desses, ao participar de uma palestra sobre a formação em psicanálise, um rapaz me pediu um abraço, mesmo sabendo que “psicanalistas não abraçam”. Circula por aí essa ideia de que o psicanalista lacaniano é frio, arrogante e tantos outros adjetivos peculiares. É tudo verdade. Tem uma hora da vida que é preciso decidir e fazer uma aposta: ou você fica com pena e chora junto com sobre os lamentos da vida, ou você trata as pessoas e as situações com a seriedade necessária, e faz um ato. Quando você fica com pena de alguém e se identifica, entende, você não ajuda. Afeto pra mim não é ter dó, não é agarrar, não é ficar dizendo que ama. Cuidado não é narcísico, não é algo que a gente faz por imagem ou conforto. Topar um laço com um estranho, numa situação estranha, de angústia e desconforto, simplesmente porque aquilo parece que é o que precisa ser feito para que alguém possa, talvez, sair de uma situação de angústia e paralisia, isso pra mim é o caminho do cuidado, do afeto, do laço social. Atos que construímos frente ao nonsense e a impossibilidade da relação sexual.
Eu não faço ideia do que eu fiz ali com aquele menino e nunca vou saber. Mas eu sei que algo aconteceu. E sei que preciso deixar essa marca escrita e registrada, sobre a possibilidade de um encontro no meio do caos. Quando eu vivo e viajo, é pra viver esse tipo de encontro com a vida, com o estrangeiro familiar: pra inventar algo e continuar vivendo. A vida é um eterno não saber em sua relação com o tempo e o espaço. E com as pessoas.