Estive em um evento organizado por uma escola de dança da minha cidade. Foram vinte e cinco apresentações de balé, jazz e outras danças que fazem parte da tradição de muitos meninos e meninas na infância. Eu e Anna (que nunca nos identificamos com o balé) não conseguíamos deixar de nos questionar sobre os diversos aspectos da educação do balé nas nossas infâncias. Na minha época, por exemplo, para fazer jazz ou alguma aula de dança moderna, as crianças eram obrigadas a cursar balé como pré-requisito para cursar outras modalidades. A desculpa para essa obrigação se pautava na premissa de que o balé insere as bases sobre postura, relação com o corpo e sobre teorias básicas da dança que serão necessárias para qualquer outra dança. Sei que essa premissa ainda é forte porque, recentemente, ouvi uma professora de dança da UFU questionando essa maneira de ensinar a dança na atualidade. Ela defendia a possibilidade do ensino da dança a partir de diferentes premissas sobre a relação com o corpo, não necessariamente a partir da tradição do balé. De qualquer maneira, o que foi ficando evidente, a cada dança que acontecia no evento, era que o tradicionalismo não estava somente na ideia de educação do balé, mas sobre o que essa perspectiva de ensino entende sobre corpo e sexualidade.
Preocupadas com as questões de sofrimento de gênero na infância, nos questionamos: Por que a função do bailarino (quase sempre) é ser “aparador” da bailarina? Por que todas as bailarinas são meninas? Por que todos os bailarinos são meninos? Para tentar elaborar respostas possíveis, peço para vocês me acompanharem no raciocínio abaixo, com ajuda da tabela.
A criança está no tempo de constituição da sua relação com o seu corpo. A maneira como cada criança vai lidar com seu corpo e sua sexualidade não é dada, não nasce como uma verdade, um saber pronto. A única coisa que nasce com cada criança são suas marcas genitais, ou seja, o corpo biológico (que obviamente marcam uma diferença e impossibilidade, mas que nada dizem sobre a invenção que cada pessoa vai precisar construir sobre esse corpo-organismo em funcionamento).
Se a criança está em pleno processo de invenção da sua relação com o seu corpo, esse tempo é bastante influenciado pelo seu contato com o social, ou seja, todos os discursos sobre corpo e sexualidade que a antecedem. Desta forma, os adultos que estão no entorno de uma criança contribuem direta e indiretamente para as diversas maneiras que uma criança pode ou não circular na descoberta de seu próprio corpo e sexualidade. A questão vem sendo o fato de que, tradicionalmente, não é permitido que a criança de fato circule e faça invenções. Já são oferecidos a elas papéis claros sobre o que é esperado, sobre quem deve ser a bailarina e sobre como deve ser o bailarino. Para algumas crianças, tudo isso funciona muito bem; mas para outras crianças, a exigência de uma resposta fixa e precoce sobre esses papéis produzem sofrimentos psíquicos intensos.
Voltando ao quadro, uma criança que está no tempo de encontrar uma identificação de gênero para si, não necessariamente vai desenvolver expressões de gênero combinadas. Uma criança pode se reconhecer como menina e ter comportamentos de menino; pode ainda se reconhecer como menino e ter comportamentos de menina (e ainda não estamos falando da combinação disso com os genitais). Assim, (1) é possível que um menino possa ter o desejo de ser a bailarina, sem ter comportamentos femininos? (2) É possível que uma menina possa ter o desejo de ser o bailarino, sem ter comportamentos masculinos? (3) É possível que um menino com comportamentos femininos, possa ter o desejo de ser bailarino? (4) Ou bailarina? (5) E o mesmo para a menina? Como vocês podem perceber, os desdobramentos são diversos! E ainda estamos fazendo apenas o cruzamento entre as questões de identidade e expressão de gênero.
Se é possível que uma criança circule em diversos papéis identitários, podendo ser bailarina ou bailarino independente da sua sexualidade, porque insistimos em achar que essas questões serão o ponto de decisão sobre a sexualidade de uma criança?
Mas as questões não param por ai. Um menino que se identifica com a feminilidade, poderia ele também, ser bailarino ou bailarina, independentemente. O mesmo vale para a menina. (6) Poderíamos, ainda, ter um casal de bailarinos formados por dois homens ou duas mulheres, ainda marcados por uma diferença com relação a posição feminina e masculina.
E se quisermos complicar um pouco mais as questões, inserindo a sexualidade na questão, podemos ainda encontrar (7) um menino que se define como homossexual desejando ser o bailarino, e (8) a menina homossexual desejando ser, mesmo assim, a bailarina. As imagens atreladas aos gêneros também não são óbvias; (9) teremos homens gays que desejarão ser bailarinos ou bailarinas e (10) meninas lésbicas que desejarão ser bailarinas ou bailarinos. E, por ultimo, podendo ser bailarino ou bailarina, (11) observaremos bailarinos (meninos ou meninas) desejando dançar com seu similar e não com seu oposto.
A diversidade é tão grande que assusta muitos professores e adultos. Como lidar com tantas possibilidades? O fato é que continuamos não encarando essa realidade plural, de forma que em uma apresentação de duas horas e meia, com vinte e cinco danças, tudo por ali continua sendo tão… tradicional.
Eu e Anna saímos da apresentação entendendo porque largamos o balé tão cedo. Talvez ele não fosse tão aberto a nossos desejos do tempo de infância, marcando, para nós, a sensação de que ali não cabíamos… “Ah, mas se tivesse sido diferente, talvez ainda tivéssemos dançado!” Nunca vamos saber e nem importa mais, pois encontramos em outros lugares essa abertura para a construção da nossa relação com o corpo. Mas muitas crianças não encontram esses espaços. Como podemos pedir que professores permitam a transmissão dessa possibilidade de invenção para crianças quando eles mesmo ainda não criaram essa relação com o próprio corpo? Por onde começamos, então?
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Indicação de filmes sobre o tema: