A responsabilidade na educação de uma criança é de quem? Família, Escola ou Estado? Pensando no que é melhor para a criança, é possível acontecer uma divisão de responsabilidade?
Essas questões têm se tornado cotidianas entre pais e educadores, preocupados com o futuro das crianças. Há um certo desconforto em todas os setores sobre a importância dessa responsabilidade e de como ela vem sendo divida. Os pais, por exemplo, se queixam de não ter mais autonomia para decidir o que é bom ou não para seus filhos. Ao mesmo tempo exigem que a escola e o Estado garantam uma educação que englobe desde regras de higiene à construção de subjetividade e identidade social. A escola, por outra lado, critica a falta de engajamento dos pais no dia-a-dia escolar da criança e se diz sobrecarregada pois, além de ensinar as disciplinas exigidas, ainda tem que ensinar temas sociais, leis, e ajudar diretamente na construção da identidade pessoal. Já o Estado exerce sua posição de Lei, aquele que tudo deve prover e tudo deve regulamentar, proteger e garantir. Como resultado dessa postura, por exemplo, assistimos ao surgimento de novas leis familiares que por vezes destituem família e escola e não conseguem garantir de fato o que propoem.
Enquanto essas questões se colocam tiramos o foco da criança e no que ela está vivendo. Quem sabe o que é melhor para ela? Será que essa discussão não mascara a questão da responsabilidade? Todos querendo apontar deveres pode ser um indício de que ninguém que ser responsável sozinho pelo sujeito que se constiuirá ou não a partir dessa infância. Mas isso não necessariamente é um problema. Vamos pensar mais sobre isso.
1. O lugar da família e a destituição subjetiva da função paterna
“Houve uma época em que os filhos eram produtores (…) Estamos na época em que um filho é, acima de tudo, um objeto de consumo emocional. (…) Quando se trata de objetos de consumo, a satisfação esperada tende a ser medida pelo custo – busca-se valor em dinheiro” Bauman (2004)
Observando o desenvolvimento social e a construção familiar, percebemos que muito mudou. Por muito tempo a educação das crianças era responsabilidade única de seus familiares. Elas só frequentavam os bancos escolares para um contato com a alfabetização e para a uma educação voltada a cognição, conteúdista. Era no contato com os adultos, por observação, que ela aprendia detalhes diversos sobre como deveria ser e se portar socialmente. (Ramos, 1992)
O filho, ao nascer, deveria se juntar aos seus familiares para somar ao trabalho, e por isso podiam ser tratados com dureza, pois esse era o tratamento comum dado a qualquer trabalhador. Os filhos, portanto, eram um bom investimento. Quanto mais, melhor. (Bauman, 2004)
Segundo Ramos (1992) foi somente a partir do século XVII que a criança deixou de ser misturada com os adultos e passou a ter uma educação voltada só para ela. E isso aconteceu num processo que envolveu escola e família. A mudança de paradigma foi acontecendo varagosamente, na medida em que passaram a ver na criança uma pessoa com necessidades próprias. Nesse momento, Bauman defende que as crianças passaram a ser vistas como um objeto de consumo e com muitas despesas atreladas. Objetos de consumo servem as necessidades, desejos ou impulsos do consumir, e os filhos estariam também nessa posição.
Se pararmos para analisar, ter filhos atualmente é uma das coisas mais caras que uma pessoa faz ao longo da vida. Bauman acrescenta a essa despesa outras necessidades que se colocam, como diminuição de ambições pessoais, sacrifício da carreira e até mesmo aceitar que alguém será dependente de você por um tempo indefinido. Tudo isso sendo irrevogável. Tomar consciência de tudo isso, segundo Bauman, pode ser uma experiencia traumática. E ai podemos apontar o começo da divisão desta responsabilidade. Por que os pais teriam que ter um peso tão grande sozinhos?
Por outro lado, Julien (2004) tentou traçar historicamente como os pais foram sendo retirados e ao mesmo tempo se retirarm de seu lugar de autoridade e modelo na educação de seus filhos. Para isso, aborda a distinção entre o que é público ou privado e como isso influencia na parentalidade. Essa distinção se torna mais clara a partir do sécuclo XX, quando o social, pela via política – de Estado, passa a avançar sobre o território familiar. Cada vez mais representantes sociais interferem na relação entre pais e filhos. O que isso denuncia é uma caracteristica da modernidade de tratar os sujeitos como pessoas que não têm condições de se relacionar sem que existam regras, leis e normas. Portanto, uma criança não poderia ser deixada ao arbítrio dos pais. Assim, em nome do bem da criança aparece um terceiro social. Segundo Julien (2004) esse terceiro social aparece de diversas formas: o Estado, a escola, a psicóloga, o pediatra, enfim, circula. Eles aparecem com a pretensão de ajudar, salvar, colocar a seguranca e os interesses da criança em primeiro lugar. O aparecimento desse terceiro é possibilitada pela propria estrutura familiar que, com a modernidade, também está cada vez mais diferente e menos coesa.
Segundo Ramos (1992) cada vez mais os sujeitos se sentem incompletos e incapazes de cuidar de suas próprias questões familiares, buscando cada vez mais uma ajuda que vem de fora, para explicar e consertar o que estaria errado internamente. O processo de desresponsabilização subjetiva é central na sociedade moderna, e com isso as pessoas tendem a buscar fora uma terceira figura, este detentora da verdade e da ordem, para dar sentido aos problemas que passam em sua intimidade, de coro familiar e pessoal.
Assim, a parentalidade passa a depender abertamente do social, por intermédio de peritos chamados para dizer quais são os direitos da criança, e os deveres de seus cuidadores. (Julien, 2004) Assim, há uma questão que se coloca: se cada vez mais a parentalidade é pública, como ficam as relações familiares? Complicadas desde que a criança nasce. Os pais sao obrigados a reconhece-la legalmente, em troca de uma autoridade parental. Ai já começa o cruzamento da fronteira entre privado e público. É uma dualidade que não tem lógicas similares, apesar de aparentemente terem o mesmo objetivo, que é o cuidado da criança.
Portanto, ao invés de responsabilizar somente uma ou duas pessoas pela educação de uma criança, essa responsabilidade foi dividida, delegada. Agora, a educação das crianças se tornava também responsabilidade do Estado e da escola. Assim, os pais não tem mais que escolher entre trabalho ou família. Eles podem continuar escolhendo suas individualidades, e delegar o cuidado familiar a terceiros, simbolizados prioritariamente pelo Estado e ela escola.
2. A escola
A sociedade atribui a escola a tarefa de passar os valores culturais, os conhecimentos instituídos por esta mesma sociedade para as novas gerações. Na posição de consumidores, eles pagam e cobram por um retorno. Essa postura pode colocar a escola em uma situação delicada já que educar é um processo complexo, que muitas vezes muda durante seu percurso e não necessariamente dá em retorno os alunos que os pais desejam ter. Em alguns momentos, educar socialmente é ir contra as aspirações e desejos aos próprios pais e esses estão ali presente para brigar, pois compraram um produto, e querem o resultado final. Exemplos de situações assim temos visto todos o dias nos jornais: alunos que maltratam professores, e são protegidos por seus pais, já que estes – no direito do consumidor e como pagadores – acham que a escola deve aceitar tudo que seus filhos fazem dentro dela; e muitos outros exemplos.
Mas a escola também tem sua parcela de culpa nesse caminho que escolheu. Como supostamente detentora do saber, cada vez mais excluiu os pais do processo de aprendizagem dos filhos, já que estes não tinham fomação pedagógica para tal. A Escola assumiu uma postura de única sapiencia sobre o que deve ou não ser ensinado , e quando esse processo de aprendizagem falha, por motivos diversos, tem pais ali prontos para cobrar e apontar erros. Entre tantos erros tomandos pela escola, observamos também como esta está se tornando ultrapassada, ao deixar de fora o avanço da tecnologia, o próprio saber que o aluno traz de sua vida pessoal e como pode usar tudo isso a seu favor.
A transmissão pedagógica se baseia em um modelo de comunicação simples, no qual o professor transmite um conhecimento e os alunos apreendem. Ela ainda está calcada em modelo de educação antiga, no qual aluno era tábula rasa e o professor detentor do saber. Os pais ficam de fora dessa equação. Portanto, quando falha no educar, ela culpa os pais – que supostamente não participam da educação dos filhos – que ela mesmo exlcuiu dessa processo. Culpa também a sociedade como um todo, as mudanças de paradigmas causadas pelas tecnologias, e não percebe que a mesmo arma usada para culpa a falha pode ser usada para avançar nos estudos.
3. O Estado
O Estado entra nesse círculo para garantir a ordem e o bem estar social. Ele vem assegurar que cada um exerça sua função: o dever dos pais, os direitos dos filhos, e também assegurar segurança, proteção e assistência a sociedade. Ou será que o:
“Estado, vêm pregar um controle generalizado,que invade a vida privada, com o pretexto de uma pretensa segurança justificada pelo bioterrorismo, a ampliação da religião em seu aspecto mais fundamentalista” (Quinet, 2009)
Segundo Lacan (Quinet, 2009), no discurso capitalista – que é o discurso que embasa a modernidade – não há espaço para a Heteridade. Só ha espaço para uma lógica do “Um”, ao qual todos deveriam se sacrificar, e que todos são iguais, e devem obedecer ao Um. A tendência é formar grupos, formar uma massa comandada por um lider, o Um completo, sem falta, um Pai que responderia a todas as interrogações e imporia todas as leis e regras. Essa postura dá um conforto ao grupo, pois deixa o poder de decisão, a responsabilidade pessoal legado a Um outro, suposto inteiro e conhecedor do bem e do mal. Assim, a Estado se coloca nessa posição de Um, e passa a adentrar a instância privada, e, para o bem de todos, impõe regras e leis, e passa a dizer o que é certo e errado na instânca social e pessoal.
Para alguns, essa postura do Estado seria a salvação do sujeito de si mesmo. Para outros, o Estado está na posição de garantir no pessoal aquilo que individualmente as pessoas não conseguem garantir por si mesmas. Mas como se definem conceitos tão subjetivos e multiplos? Como definir o que é bom para todas as crianças, quando pensamos no um, no sujeito psicanalitico, que sendo olhado em sua singularidade se torna tão difernte e tem necessidades diversas um do outro? Com que critério estabelecemos o que é melhor para todos, o que é ruim e o que deve ser incluído ou deixado de lado, em termos de educaçao?
4. Educa-se uma criança? Uma educação possível.
Melman (1994) aponta que o primeiro problema quando se fala de educação de crianças é o lugar no qual nos colocamos. Segundo o autor, cada um de nós recebeu um tipo de educação, e por isso já temos conceitos formados sobre o que é melhor ou não, o que funciona e o que não funciona. Assim, já começamos tentando educar nossas crianças deixando de lado a criança de hoje, e colocando as queixas e reinvidações da nossa educação em primeiro lugar.
A melhor educação talvez seja essa que fracassa. Melman (1994) faz essa afirmação, pois acredita que toda educação hoje tem a tendência a colocar o mesmo ponto de vista em todas as crianças, e tem a pretensão de formar cidadãos iguais. Partindo do ponto de vista do sujeito da psicanálise, um sujeito único, com direito de escolha, talvez faça mesmo parte da constiuição do sujeito viver contra e a favor da educação que recebeu, pelo resto de sua vida.
Melman acredita que o erro, em todos os setores está em tratar as crianças como papagaios, meros repetidores de um discurso familiar, escolar e social. Discurso esses que as crianças cada vez mais tem se recusado a repetir, e nós assistimos aos milhares de sintomas que aparecem todos os dias no âmbito escolar.
Os pais, na sua responsabilidade com o erro, se recusam a aceitar que seus filhos não aceitem o que eles esperam dele, e que o mesmo está autenticamente dividido em uma posição dialética. Eles se colocam na posição de analisar a educação que seus próprios pais tiveram e desejam retransmitir e recusar, se for o caso. Que saber os pais transmistem a seus filhos? Se a educação é vista como uma transmissão de saber, então este saber transmitido pelos pais, e pela escola é um saber fracassado, ultrapassado, pois vem de um posição ideal que obviamente nossos filhos percebem as falhas e fracassos. Melman acredita que essa é uma falha estrutural na chamada educação escolar, social e moral, e está no centro da discussão.
As crianças, apesar de muito novas, já sabem perceber todas as falhas e fracassos no nosso dicurso ideal, e os apontam o tempo todo, nos colocando frente a frente com aquilo que nos mesmos fracassamos em entender. Portanto, para Melman, uma grande dificuldade com as crianças hoje, é que elas nos jogam de volta o nosso próprio inconsciente, aquilo que não entendemos e não queremos lidar.
Melman afirma que talvez essa seja a maior educação que podemos dar: a do encontro com o inconsciente e tudo que nele é estranho e não conseguimos lidar. É transmitir o nada, o Real, o vazio e a falta de sentido presente na estrutura da vida de um ser humano. Mas essa transmissão não é fácil, e só acontece via trauma, conflito.
Estou falando dos pais, mas essa educação vale também para a escola. É no conflito que a escola pode alcançar e educar as crianças, tirando-as da posição de objeto, e colocand0 -as na posição de sujeitos que vão ter que passar por conflitos e traumas para adultescer.
No final, a criança no meio de tudo isso virou produto. Ela nao é vista mais como sujeito individual e sim como uma coisa parte do rebanho, que vai continuar o ciclo social e do Estado e vai fazer a mesma coisa com seus filhos. Como retomar a responsabilizaçao dos sujeitos pais, do sujeito professor e da educaçao no Um a Um?