Nosso tempo contemporâneo, seja ele pós-moderno, hipermoderno ou o fracasso da modernidade, é um tempo de descontinuidade. Ficou no passado o período em que determinados ideais reinavam imperiosos oferecendo suas certezas, ainda que não inclusivos e para poucos. Para a maior parte das pessoas, as nomeações tinham um efeito de sustentação desses ideais, bastava nos adaptarmos a eles. Nos formulários, por exemplo, você escolhia se era do sexo feminino ou masculino, se era solteiro ou casado, escrevia o nome do seu pai e da sua mãe, dizia a cor da sua pele. Tudo parecia muito simples.
Hoje as respostas já não são mais tão simples. Estamos no cerne de longas e profundas transformações sociais advindas especialmente dos que se sentiam excluídos por esses ideais e nomeações, ou seja, do que ficava de fora. A parcela de pessoas que ficava excluída e “sobrava” era muito grande, mas não tínhamos ainda espaço para lidar com esses números. O fato é que o ideal era para poucos e o que ficou de fora por muito tempo, retornou demandando reconhecimento. O que ficou de alguma maneira excluído da possibilidade de nomeação, insiste para ter seu espaço. Assim, temos vivido uma enxurrada de novas possibilidades de identificações e renomeações, na busca por evidenciar a pluralidade de diferenças. Não é mais tão simples preencher no formulário o nome do pai e da mãe, porque passamos a ter famílias com duas mães e/ou dou pais. Fazer um x no espaço que identifica nosso gênero, por exemplo, ficou complicado para algumas pessoas trans que ainda não sabem como devem se identificar entre as opções masculina e feminina. De alguma maneira, tudo como conhecíamos vem sendo descontruído e reconstruído de uma maneira inquietante e veloz. As siglas aumentam, as nomeações aumentam e mesmo assim fica a sensação, no final do dia, que nada disso ainda é o suficiente para dar conta da diferença, anunciando que muito mais está por vir.
Toda essa avalanche de situações e novidades apresentam novos dilemas, ninguém se salva. Como se referenciar a homens e mulheres quando essas duas categorias não parecem mais ser suficientes para distinguir as pessoas? Como reconstruir nossos lugares sociais, nossos ideais e fantasias quanto tudo está mudando tão rapidamente e as pessoas ainda não conseguiram apreender a importância dessas tentativas (muito mais do que o sucesso ou o fracasso delas)?
No meio dessa confusão, publicitários, grandes vendedores de imagens, tentam encontrar um porto seguro para trabalhar. Quando as imagens de um ideal passam a não servir mais, outras imagens tomam a frente, em uma quantidade impressionante. Por trás de toda imagem vendida por um publicitário, existe um ideal atrelado. Assim, aprofundar-se no que está sendo vendido é importantíssimo para um profissional ter sucesso na venda de suas imagens e ideais. Não basta mais fazer uma promoção em que a mulher ocupa um lugar secundário, de esposa ou mãe. Esse ideal já não corresponde a maior parte da realidade das mulheres hoje. Usando ainda o exemplo das mulheres, elas têm se permitido construir diversos espaços para ocupar e representar. Portanto, como fazer uma propaganda voltada para o público feminino que possa incluir a vasta dimensão do que é ser mulher hoje?
A partir de questões que não possuem respostas fáceis, muitas pessoas tem se implicado, dedicando tempo, estudo e criatividade para construir propagandas que possam ser inclusivas, ou seja, buscam achar soluções que permitam diversas possibilidades e que de alguma maneira não ofendam gratuitamente a nenhum grupo específico. É uma missão dificílima, já que tudo se parece muito com um terreno em erosão. Os publicitários engajados já sacaram que uma propaganda nunca será apenas uma propaganda inocente; que questões políticas estão mais presentes do que nunca e que não podem simplesmente ser deixadas de lado. Mas nem sempre é assim. Infelizmente.
Essa semana, tivemos um exemplo de como uma propaganda infeliz pode ter um desfecho trágico. Uma churrascaria publicou em sua página do facebook uma propaganda que pode nos ajudar a pensar no que estamos colocando em pauta. A propaganda era a seguinte:
Em uma primeira olhada, não observamos nenhum crime ou afronta gritante acontecendo na propaganda. Percebemos que o desconto é proporcionado de acordo com o gênero da pessoa que se apresenta no estabelecimento e isso gera algumas questões. Ao meu ver, nada que não pudesse ser esclarecido de uma maneira tranquila e inteligente, ainda que pautado em um ideal que hoje fracassa. Sabemos que a questão dos gêneros é um assunto extremamente atual e suscita paixões e questões importantes, como, por exemplo, sobre o lugar da mulher em uma sociedade ainda extremamente machista. Logo, o esperado aconteceu: algumas mulheres questionaram o motivo do desconto apenas para mulheres. A questão é bastante pertinente para os tempos atuais. Mas parece que não foi isso que os responsáveis pelo anúncio pensaram. Frente a questão, sobre o que faria mulheres “merecerem” pagar mais barato, a discussão ferveu nos comentários da página. A discussão entre os usuários caminhava para: (1) a mulher não “merecer” mais ou menos do que homens, já que a luta pela igualdade de direitos defende essa postura; e (2) usar a idéia de gênero para justificar uma meritocracia está fracassada como ideal na atualidade e sempre gera mal estar. Ao invés de encarar o mal estar já instalado, o restaurante decide:
A partir do posicionamento acima, o que era apenas um caso de propaganda mal planejada passa a ser uma questão de descaso com possíveis clientes. Responder a inquietações de algumas possíveis clientes foi tomado como bobagem, “mimimi”. O texto ainda deixa claro que, na ética da empresa, vale tudo para conseguir atenção, a qualquer custo. E já que o objetivo foi atingido (“o restaurante está cheio”), as questões políticas suscitadas pela propaganda não passam de “blá blá blá”.
Estamos todos vivendo no tempo da inexistência de uma suposta neutralidade: tudo é posicionamento político, inclusive a decisão por não participar ou por permanecer em silêncio. Fazer pouco caso da problematização de algumas pessoas não poderia ter sido mais infeliz. O restaurante poderia ter saído dessa sinuca de bico de diversas maneiras, mas preferiu agir com deboche frente a uma questão que é muito séria para alguns. A partir disso, o tom de guerra já estava instalado.
Não satisfeitos com o resultado da avalanche de críticas frente a propaganda e o posicionamento do restaurante, eles novamente mudam seu posicionamento, mas dessa vez para explicitar a posição política:
“Apoiamos medidas que confortem às famílias nesta crise, PRINCIPALMENTE OS PAIS DE FAMÍLIA que somando os gastos DA ESPOSA E FILHAS acabam muitas vezes deixando de participar do almoço de confraternização apenas pelo preço”.
Aqui nesse trecho fica evidente a posição política e o ideal que sustentaram a propaganda desde o início: a cena de uma família em que o homem sustenta a casa e suas mulheres (esposa e filhas) e que por isso deve ganhar desconto para pagar por elas. Reparem ainda que a imagem usada, das mulheres com coraçõezinhos, só reforça um outro estereótipo sobre mulheres, que elas se reúnem apenas para falar de suas paixões e romances).
A frase e a foto carregam um ideal tradicional e machista que vem sendo insistentemente desconstruído ao longo dos últimos anos. No quesito família, já aprendemos que as famílias hoje são de diversas formas: mães solteiras, dois homens, duas mulheres, enfim, diversas apresentações que não se enquadram nesse ideal de família descrito. No quesito gênero, existem diversas famílias que são sustentadas por mulheres e diversas outras famílias em que o casal divide igualmente suas despesas, ou seja, o gênero já não define mais claramente o lugar da mulher nem do homem nas relações. No que tange a foto, sabemos que os assuntos das mulheres são os mais plurais possíveis, ou seja, dá pra brincar de desconstruir esse ideal antigo e frágil sem se esforçar muito. O preconceito e o machismo na resposta são explícitos.
Se isso já não fosse um problema suficiente para ser pensado, existe ainda uma outra questão: o discurso de ódio que é gerado por esse tipo de posicionamento (anti)ético. Em um dos posts, o restaurante faz questão de afirmar que não se responsabiliza pelos comentários em sua página. Justifica que não possui tempo para ler comentários e moderar, algo que atualmente é esperado com responsabilidade social de qualquer empresa que decide habitar o espaço online. Não se responsabilizar pelo conteúdo gerado em usa página vai na contramão do que temos acompanhado nas redes sociais, de empresas preocupadas com a inclusão. Assim, assistimos a um show de horror e ódio:
Esses comentários, todos masculinos, reforçam as suspeitas que não calaram: o machismo existe, e forte! Por que o fato de algumas mulheres questionarem as bases que sustentavam o desconto do preço, pautado por gênero, incita tanto ódio nas respostas das pessoas? Por que mulheres precisariam comemorar isso que é chamado de “cavalheirismo”, um “benefício”, que na verdade só evidencia uma condescendência gigantesca com elas? Sendo a sociedade justa na questão de gêneros, mulheres e homens poderiam pagar e ter os mesmos descontos, sem que isso fosse um peso para o outro gênero. Ao não se responsabilizar pelo discurso de ódio, o restaurante comete uma segunda violência com essas mulheres, reafirmando que elas precisam aceitar sempre o que um imperativo social machista diz que elas devem gostar ou não.
E só piora. As mulheres se voltam contra as próprias mulheres:
Desde quando um pedido de igualdade de direitos, independente dos gêneros, se torna uma questão de falta de pinto? Mulheres que lutam por igualdade de gêneros não podem ser consideradas mulheres? Exigir respeito e igualdade de gênero sempre vai terminar reduzido a piadas ridículas sobre pênis? A vida de uma mulher se resume a encontrar um homem que a queira?
Como podemos perceber, uma única propaganda pode fazer muito estrago. Tudo é política. Tudo carrega um ideal sobre o ser humano e suas relações. As desconstruções não param de acontecer e novos ideais e respostas não param de surgir. Será que podemos conviver com a idéia de que perguntas não são um problema? O problema real aqui parece ser a falta de espaço para o debate e o respeito ao diferente nas discussões. Até quando ainda teremos publicidades como essa? Até quando as pessoas ainda vão achar graça disso tudo e continuar rindo?
Como disse Duvivier em uma entrevista recente, fazer humor é tomar partido. Ou seja, até o humor é político. E sim, podemos escolher nossas piadas e do que rir. Fazer piada de quem está lutando por seus direitos não parece nada divertido.