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As primeiras psicanalistas em 1910

Nas reuniões das quartas-feiras, levou um certo tempo até que algumas mulheres fossem convidadas a participar. As reuniões tiveram início em 1902, mas até 1910 nenhuma mulher havia participado, não por falta de pretendentes. As reuniões chegaram a contar com 24 membros homens, 18 deles judeus, 18 deles médicos. Isaack Sadger e Fritz Wittels eram contrários a entrada de mulheres na sociedade, porém todos os outros membros tinham posições favoráveis a essa abertura. Em 1907, as reuniões das quartas-feiras se transformaram na WPV, primeira instituição psicanalítica do mundo. Mas foi apenas em 1910 que a primeira mulher foi aceita em uma instituição de psicanálise, mesmo ano em que a WPV se transformou na IPA. As mulheres psicanalistas foram todas primeiramente conhecidas por serem as famosas histéricas, pacientes dos primeiros analistas.

A entrada das mulheres na psicanálise se deu primeiro pela condição de pacientes e segundo pela condição de analistas da infância. Na biografia de quase todas elas, ou nas pequenas notas que restaram sobre algumas, sempre encontramos como descrição a especificidade na análise com crianças. Curioso pensar que esse era o lugar comum de entrada das primeiras mulheres psicanalistas. Naquele tempo, pensar na infância ainda era função da mulher, fosse ela dona de casa ou psicanalista.

Os anos se passaram, mas existe um ranço dessa história que nos acompanha ainda hoje. É recorrente escutar pelos corredores obscuros da formação de analistas que trabalho com crianças é pouco valorizado, algo simples, muitas vezes visto até mesmo como desnecessário. “Ah, então você atende crianças! Então quem gosta de brincar pode atender crianças”. Ou ainda: “Como é possível a existência de psicanálise com bebês? “. Ao longo de anos, grandes mulheres analistas foram responsáveis pela construção de várias clínicas com crianças, em diversas concepções teóricas dentro das tantas psicanálises existentes. Um estudo quantitativo recente afirma que hoje a maioria das analistas do mundo são mulheres. Independente dos números, o fato é que o lugar das primeiras analistas freudianas ainda fica muito obscurecido por figuras famosas e polêmicas como Melanie Klein e Anna Freud.

A maioria dos chamados primeiros psicanalistas, que somaram 24 em certo tempo das reuniões das quartas-feiras, nunca passaram pelo processo de análise. Assim, é interessante notar que as mulheres inauguram também, na psicanálise, um axioma muito repetido na formação dos analistas ainda hoje, de que um analista sai de sua própria análise pessoal. Como gosta de afirmar Roudinesco, a importância do laço entre os pacientes e seus analistas para a evolução da teoria psicanalítica começa ai, na clínica com essas mulheres e na passagem de muitas delas de pacientes para analistas. Essas mulheres não ensinaram para psicanálise apenas sobre a histeria ou tantos outros quadros diversos; ensinaram também algo sobre a transmissão, sobre a escolha pela psicanálise como uma tentativa de saída para a invenção.

 

Roudinesco, E. Em defesa da Psicanálise.

Silva & Santo. A história das primeiras mulheres psicanalistas do início do século XX.

 

O balé e a questão dos gêneros

Estive em um evento organizado por uma escola de dança da minha cidade. Foram vinte e cinco apresentações de balé, jazz e outras danças que fazem parte da tradição de muitos meninos e meninas na infância. Eu e Anna (que nunca nos identificamos com o balé) não conseguíamos deixar de nos questionar sobre os diversos aspectos da educação do balé nas nossas infâncias. Na minha época, por exemplo, para fazer jazz ou alguma aula de dança moderna, as crianças eram obrigadas a cursar balé como pré-requisito para cursar outras modalidades. A desculpa para essa obrigação se pautava na premissa de que o balé insere as bases sobre postura, relação com o corpo e sobre teorias básicas da dança que serão necessárias para qualquer outra dança. Sei que essa premissa ainda é forte porque, recentemente, ouvi uma professora de dança da UFU questionando essa maneira de ensinar a dança na atualidade. Ela defendia a possibilidade do ensino da dança a partir de diferentes premissas sobre a relação com o corpo, não necessariamente a partir da tradição do balé. De qualquer maneira, o que foi ficando evidente, a cada dança que acontecia no evento, era que o tradicionalismo não estava somente na ideia de educação do balé, mas sobre o que essa perspectiva de ensino entende sobre corpo e sexualidade.

Preocupadas com as questões de sofrimento de gênero na infância, nos questionamos: Por que a função do bailarino (quase sempre) é ser “aparador” da bailarina? Por que todas as bailarinas são meninas? Por que todos os bailarinos são meninos? Para tentar elaborar respostas possíveis, peço para vocês me acompanharem no raciocínio abaixo, com ajuda da tabela.

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A criança está no tempo de constituição da sua relação com o seu corpo. A maneira como cada criança vai lidar com seu corpo e sua sexualidade não é dada, não nasce como uma verdade, um saber pronto. A única coisa que nasce com cada criança são suas marcas genitais, ou seja, o corpo biológico (que obviamente marcam uma diferença e impossibilidade, mas que nada dizem sobre a invenção que cada pessoa vai precisar construir sobre esse corpo-organismo em funcionamento).

Se a criança está em pleno processo de invenção da sua relação com o seu corpo, esse tempo é bastante influenciado pelo seu contato com o social, ou seja, todos os discursos sobre corpo e sexualidade que a antecedem. Desta forma, os adultos que estão no entorno de uma criança contribuem direta e indiretamente para as diversas maneiras que uma criança pode ou não circular na descoberta de seu próprio corpo e sexualidade. A questão vem sendo o fato de que, tradicionalmente, não é permitido que a criança de fato circule e faça invenções. Já são oferecidos a elas papéis claros sobre o que é esperado, sobre quem deve ser a bailarina e sobre como deve ser o bailarino. Para algumas crianças, tudo isso funciona muito bem; mas para outras crianças, a exigência de uma resposta fixa e precoce sobre esses papéis produzem sofrimentos psíquicos intensos.

Voltando ao quadro, uma criança que está no tempo de encontrar uma identificação de gênero para si, não necessariamente vai desenvolver expressões de gênero combinadas. Uma criança pode se reconhecer como menina e ter comportamentos de menino; pode ainda se reconhecer como menino e ter comportamentos de menina (e ainda não estamos falando da combinação disso com os genitais). Assim, (1) é possível que um menino possa ter o desejo de ser a bailarina, sem ter comportamentos femininos? (2) É possível que uma menina possa ter o desejo de ser o bailarino, sem ter comportamentos masculinos? (3) É possível que um menino com comportamentos femininos, possa ter o desejo de ser bailarino? (4) Ou bailarina? (5) E o mesmo para a menina? Como vocês podem perceber, os desdobramentos são diversos! E ainda estamos fazendo apenas o cruzamento entre as questões de identidade e expressão de gênero.

Se é possível que uma criança circule em diversos papéis identitários, podendo ser bailarina ou bailarino independente da sua sexualidade, porque insistimos em achar que essas questões serão o ponto de decisão sobre a sexualidade de uma criança?

Mas as questões não param por ai. Um menino que se identifica com a feminilidade, poderia ele também, ser bailarino ou bailarina, independentemente. O mesmo vale para a menina. (6) Poderíamos, ainda, ter um casal de bailarinos formados por dois homens ou duas mulheres, ainda marcados por uma diferença com relação a posição feminina e masculina.

E se quisermos complicar um pouco mais as questões, inserindo a sexualidade na questão, podemos ainda encontrar (7) um menino que se define como homossexual desejando ser o bailarino, e (8) a menina homossexual desejando ser, mesmo assim, a bailarina. As imagens atreladas aos gêneros também não são óbvias; (9) teremos homens gays que desejarão ser bailarinos ou bailarinas e (10) meninas lésbicas que desejarão ser bailarinas ou bailarinos. E, por ultimo, podendo ser bailarino ou bailarina, (11) observaremos bailarinos (meninos ou meninas) desejando dançar com seu similar e não com seu oposto.

A diversidade é tão grande que assusta muitos professores e adultos. Como lidar com tantas possibilidades? O fato é que continuamos não encarando essa realidade plural, de forma que em uma apresentação de duas horas e meia, com vinte e cinco danças, tudo por ali continua sendo tão… tradicional.

Eu e Anna saímos da apresentação entendendo porque largamos o balé tão cedo. Talvez ele não fosse tão aberto a nossos desejos do tempo de infância, marcando, para nós, a sensação de que ali não cabíamos… “Ah, mas se tivesse sido diferente, talvez ainda tivéssemos dançado!” Nunca vamos saber e nem importa mais, pois encontramos em outros lugares essa abertura para a construção da nossa relação com o corpo. Mas muitas crianças não encontram esses espaços. Como podemos pedir que professores permitam a transmissão dessa possibilidade de invenção para crianças quando eles mesmo ainda não criaram essa relação com o próprio corpo? Por onde começamos, então?

 

 

Indicação de filmes sobre o tema:

Romeus

Tomboy

Billy Eliot

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